DA ESCREVIVÊNCIA À LUZ: corpos estranhos em busca do existir
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Por Emanuel Lucas*
Há uma cognição científica solidificada através de uma força dominante e genocida que vem sendo exercida há muito mais de dois mil anos, tratando as questões da “cosmologia universal” (do eu mesmo) acerca de dimensões da razão-verdade como exercício de controle e poder sobre os corpos estranhos que aqui habitam a nossa biosfera terrestre.
Ao longo desses tempos, esses corpos estranhos vem experimentando a vida de maneira peculiar e desrespeitosa (digo até que afrontosa) frente à dinâmica imposta pela “verdade” eurocêntrica justificada nas teorias platônicas no que diz respeito ao “si mesmo” como “sujeito pensante” dotado de um intelecto que é independente em relação ao meio em que vive e ser superior por reunir razão e sabedoria em uma pessoa só.
Afrontar essas forças estruturantes trata-se, mesmo que custe centenas de milhares de vidas, de um método de sobrevivência e uma estratégia para manter-se vivo. Além de experimentar um potencial pleno da verdade sem ruídos, deixando de lado a superficialidade dos fatos e mergulhando na imensidão do cosmos, passaporte direto para conectarmos ao nosso Orí, harmonizando o corpo e equilibrando a mente.
Este ensaio trata-se mais de uma provocação reflexiva sobre o domínio que o Ocidente têm em relação às nossas vidas. Trata-se de questionar a santa trindade da cosmologia platônica (a ordem, a organização e a harmonia) que classifica o “eu pensante” isolado/independente – possuído pela razão – como “objeto” e negando o “sentido simbólico” – eu cósmico, “sujeito” complexo em símbolos e sentidos; a intuição – gerando a separação e o afastamento da relação cósmica para objetificar os processos aproximando-se de uma cognição científica estruturada na “verdade” do objeto e da negação do sujeito.
Trata-se também de externar a minha cruel poética na busca do conhecimento, fruto de um exercício penoso e doloroso do encontro com o eu mesmo, materialmente falando, os cinco sentidos, e o cosmos – a imaterialidade, a intuição, o sagrado, o orgânico, o verdadeiro – a inter-relação com o meio, a temporalidade e a memória. O eu cósmico.
Não dá para fazer qualquer análise da nossa conjuntura sem apontar como pauta central as questões raciais, e como o homem branco ocidental é responsável pela destruição das civilizações pretas. Destruir uma civilização significa desmantelar seu sistema espiritual, exterminar as inovações tecnológicas ali presentes, desfazer sua economia, desarranjar toda a sua cultura e exterminar/explorar seu povo.
Enquanto me debruço nas leituras centradas em saberes que foram dizimados pela supremacia branca, é estarrecedor me enxergar como brasileiro e negro diante de uma ‘nação’ que nos adoece, que disputa o tempo inteiro nossas cabeças, que nos envenena, que nos educa diante das suas perspectivas incoerentes, que nos encarcera e que também nos extermina.
É preciso questionar o pensamento dominante, uma vez que o eurocentrismo estudou nossa gente sem compreendê-la, e nos interpretou sem ao menos nos conhecer. Vou precisar de tempo para dar conta dos entendimentos sobre as afroperspectivas que diz respeito ao berço da humanidade, e sei que não será fácil vivenciar uma experiência intelectual cheia de responsabilidades no que diz respeito à soberania dos nossos saberes. Mas quero adiantar minhas pró-vocações, haja vista a temporalidade em que estamos inseridos, diante de um contexto de censura e violência. O amanhã é incerto para jovens negras e negros, então eu me utilizo do hoje para reverberar meus sonhos através da minhas ideias inquietantes e questionadoras.
Esse que vos escreve, pede licença aos seus Ancestrais.
Peço licença também às mais velhas, aos mais velhos, e, principalmente, às mais novas e aos mais novos. Escrevo-vos porque em meio à disputa do conhecimento, repensar meu papel enquanto jovem negro, educador e estudante em formação docente é de fundamental importância para questionar as metodologias e práticas pedagógicas que nos são apresentadas.
É preciso garantir e despertar o senso crítico para compararmos sistematicamente as ‘verdades’ do colonizador e as insubmissões dos povos que nos antecederam e que até hoje resistem, utilizando a nossa narrativa histórica como ferramenta crucial para que o povo negro não fique apenas nas notas de rodapé e em etc nos textos científicos nas visões eurocêntricas limitadas. Saibam que etc para nós é Educação, Tecnologia e Cultura Ancestral.
Aqui, trago minha escrita carregada de energia que só quem sente sabe, que só quem é de verdade, sente. Apresento nesta poética o momento em que é preciso ficar desnudo da racionalidade aprendida, re-aprendida e passada por todos esses milênios de geração para geração. Aqui, trago comigo a experiência de estar de frente ao espelho e me enxergar diante de mim mesmo, tendo um encontro com o cosmos, com o Eu, com o divino. É doloroso. É cruel. Há medo. Às vezes falta força. Mas é preciso ter coragem de pular do penhasco, enfrentando o seu ínfimo, e acreditar que tenho asas e posso voar. É preciso experimentar a resiliência como processo de autocrítica e ressignificação para viver o amor interno, pois é dessa forma que visualizo a possibilidade da re-construção do processo da narrativa histórica relativizando o cosmos da perspectiva ocidental, e assim ressignificá-lo como ferramenta espiritual de um povo.
Não sei aonde e nem quando concluirei esse ensaio, pois precisaria de muitas páginas dessas para dar conta de organizar toda essa inquietação poética (um dia talvez, epistemológica) que estou me disposto a re-construir, de forma a coadjuvar na escrevivência (como rememora Conceição Evaristo), além de repensar pra quem servirá essa escrita que estou-estamos tramando. Mas é aqui mesmo que quero agradecer de coração cheio de sonhos a Esù, guardião das porteiras do meu caminhar e proclamador da tecnologia que reverbera em minha consciência para externar esse ebó da comunicação e da informação. (Lá na porteira eu deixei meu Sentinela, eu deixei Esù tomando conta da cancela. Laroyè. Esù é Mojubá!) Gratidão!
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Esù é Orixá da comunicação, sem ele seria impossível a comunicação com o mundo espiritual.
Bem, questionando-me sobre a vida, e aprendendo com os ensinamentos das pessoas mais velhas, mais novas e também as do meu tempo, entendi que o sentido dela e de estarmos aqui é o caminhar. Viver é caminhar, e o caminho que percorremos diz exatamente quem somos e quem queremos ser, portanto nossa ação aqui neste chão é caminhar com passos firmes, com a cabeça sempre alcançando os passos dos pés.
A História está diretamente ligada à vida, pois a vida é uma história narrada continuamente. Quem está narrando a tua história e a história dos seus descendentes? A História também diz respeito a um tempo, espaço e memória.
Sem intenções de me aprofundar – neste momento – sobre as fundamentações e teorias da construção do pensamento histórico como narrativa, quero deixar registrado que ao tempo que é desconfortável reivindicar a narrativa histórica numa afroperspectiva, também é complicado lidar com a repercussão negativa em torno dela, uma vez que para a branquitude ainda é um problema ver pretas e pretos reivindicando suas narrativas.
No Brasil, as opressões são vividas de diversas maneiras, e antes de pautarmos classe, gênero, escolaridade, localização geográfica, precisamos ser honestas/os e tomar como ponto de partida as questões etnicorraciais. A temporalidade da construção do pensamento ocidental enraizado nas entranhas filosóficas e científicas não é tão distante, e os povos que nos antecederam sempre estiveram em constante disputa pela reconstrução desse pensamento. No entanto, pegando o gancho das palavras de um irmão querido – o Diegão, esse que corre trechos no fortalecimento das nossas memórias e afetividades -, nunca devemos perder de vista que “somos iguais, mas somos diferentes.” Respeitar a diversidade não é querer igualar os desiguais, é respeitar e/ou garantir direito para os desiguais. Eu sigo acreditando que somos todos imigrantes neste mundão de minha Mãe, e que devemos estar em constante harmonia para encontrarmos nosso equilíbrio.
O conhecimento é uma chave preciosa para o acesso direto com à consciência, e uma passagem entre Ancestralidade e tempo presente, permitindo uma projeção e construção de um futuro. Ora, se o ser humano faz parte do cosmos e possui uma relação de intimidade com outros seres cósmicos, por que a construção do processo da narrativa histórica da filosofia a respeito da cosmologia permeia uma historicidade hierarquizada na cosmovisão platônica?
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Não pretendo responder tal questionamento de maneira soberba ou superficial. Acrescento ainda que futuramente quero elencar de forma mais fundamentada, buscando auxílio teórico e prático, para sustentar minhas perspectivas que compartilho neste ensaio. Nesta ocasião, quero apenas divagar sobre as inquietações cotidianas que andam perambulando na mente deste jovem negro sonhador, e que através de suas escrevivências consegue brilhar e sentir a luz. Luminosidade essa que é composta pela luz/brilho das minhas/meus semelhantes.
Diante da cosmovisão platônica, fundamentada a partir da hierarquização e consequentemente do longo processo de colonização, é possível afirmar que a racionalidade em busca do “eu independente”, nos leva à uma solitude impedindo-nos do reconhecimento mútuo na totalidade, ignorando os sentidos simbólicos e gerando corpos estranhos que tentam existir, mas são apenas controlados pela grande estrutura de PODER. A Virtude e a Justiça, é o campo que considera os filósofos as pessoas mais inteligentes e importantes da sociedade, pois esses, e apenas esses, são responsáveis pela representação dos demais sujeitos inseridos no contexto social, categorizando-os enquanto trabalhadores braçais (escravos) e guerreiros (militares).
Eu tento apresentar uma afroperspectiva baseada em um processo íntimo e pessoal da descolonização do meu ser, haja visto, que nossa construção de conhecimento se deu por longas e demoradas gerações, a partir de uma educação colonizada e religiosa. A princípio, o cosmos nada tem a ver com religiosidade, e sim com espiritualidade.
Tratando-se de terras brasilis, com a chegada do homem branco e a invasão das nossas terras indígenas, há uma peculiaridade corriqueira da colonização em todo o mundo, que é preciso levar em consideração dentro das nossas análises (poéticas e ou epistemológicas), o fato da evangelização – destruindo a fé e colonizando nossos espíritos na propagação da religiosidade do homem branco -, das mercadorias – como moeda de compra dos nossos espíritos – e a militarização – como força repressora dos nossos corpos estranhos, na tentativa da normatização e homogeinização da sociedade como um todo.
Eis um bom caldo para endossarmos este embrião epistemológico e nos aprofundarmos em pesquisas mais detalhadas, mas como eu disse, por enquanto a intenção é apenas provocar e apresentar as incoerências deste pensamento colonizador que permeia todas as nossas estruturas sociais.
A História carrega uma especificidade em relação às outras Ciências, e futuramente eu quero me dedicar aos estudos dos movimentos diaspóricos e à reconstrução da nossa narrativa histórica. Aqui, quero ressaltar a importância de dissociarmos a representação do cosmos da religiosidade e vinculá-lo à espiritualidade. Sem querer levantar juízo de valor a qualquer teórico ou estudioso, eu acredito que o sustentáculo do pensamento filosófico ocidental ainda é uma cadeia que estrutura a raiz política e social impedindo os sujeitos do encontro com o divino. Ora, se o conhecimento é a chave para a conexão com o nosso Orí, somos deuses e deusas responsáveis pelo equilíbrio e a harmonização deste plano terrestre. O conhecimento é uma Coroa pertencente às Rainhas e aos Reis.
Contudo, mas não por fim, ao tempo em que as pessoas negras estão discutindo a nossa negritude //enquanto disputa do conhecimento//, os brancos precisam discutir os reflexos da branquitude em uma sociedade que historicamente nega a nossa existência, e trata com estranheza os nossos corpos. Esse é um convite a experimentarmos a nossa humanidade e a do outro. Contanto, precisamos nos fortalecer na construção de ferramentas, estratégias e metodologias para fazermos o enfrentamento dessa disputa do conhecimento, desconolizando nossas almas, nossas mentes e nossos corpos e correndo sempre em busca das nossas coroas de Reis e Rainhas.
Vamos atrás das nossas!
*Emanuel Lucas é Educador Popular, Coordenador Pedagógico do Instituto Cultural de Arte e Educação Nego D’Água e Estudante de História na Universidade de Pernambuco.