Redação Pragmatismo
Educação 06/Dez/2017 às 13:58 COMENTÁRIOS
Educação

Como o atual modelo de educação transforma pessoas em capital humano

Publicado em 06 Dez, 2017 às 13h58

Há um grande interesse das classes dominantes em manter um modelo de educação que tem como objetivo transformar pessoas em capital humano, de modo que será mais fácil, para conseguir seus objetivos, ver o homem como uma ‘lata’ vazia que vão enchendo com seus ‘depósitos’ técnicos

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A velha escola era a escola do estudo livresco, obrigava as pessoas a assimilar uma quantidade de conhecimentos inúteis, supérfluos, mortos, que atulhavam a cabeça e transformavam a jovem geração num exército de funcionários talhados todos pela mesma medida”. Vladimir Lenin

Raphael Silva Fagundes*, Diplomatique

Eu poderia estar contando a história do personagem do conto do Mágico de Oz, ou alguma de ficção científica, mas é de educação que trata este artigo.

Há um grande interesse das classes dominantes em manter a educação em seu modelo tradicional desde a consolidação do capitalismo. Uma educação que tem como objetivo transformar pessoas em capital humano, de modo que “será mais fácil, para conseguir seus objetivos, ver o homem como uma ‘lata’ vazia que vão enchendo com seus ‘depósitos’ técnicos”.[1]

Roberto Leher mostra que essa visão é legitimada por prêmios Nobel (Friedman, Schultz e Becker), por intelectuais coletivos do capital como o Banco Mundial, a OCDE, Fundação Ford, a Open Society Foundation de George Soros etc., e por entidades empresariais. O objetivo é “converter o conhecimento e a formação humana em ‘capital humano’”. [2] Em um mundo em que a tecnologia vem avançando, homens que pensam cada vez menos estão sendo programados para construir máquinas que pensam cada vez mais.

Neste contexto, o ódio a Paulo Freire passa a ter sentido. A sua proposta de educação libertária, que compreende o ser humano em sua totalidade, produtor de uma consciência crítica, acaba se tornando um óbice para esse mercado que comercializa seres humanos. A educação proposta pelo mercado é exatamente aquela que tem o objetivo de transformar o aluno em um objeto, um investimento que irá se adaptar à cadência da produção capitalista. O homem deve ser domesticado, doutrinado, embrutecido. O educando passa a ser um depósito de informações úteis para resolver os problemas técnicos, sendo incapaz de criar: “perde assim seu poder de criar, se faz menos homem, é uma peça”,[3] conclui Paulo Freire.

Educa-se para ser individualista, para cultivar o particular, a autoconservação. Para se resolver a própria vida, ou para se ter uma noção de um eu que não se vê como parte de um todo. A educação passa a servir apenas para o indivíduo internalizar as normas que guiarão a sua vida prática.[4] Tem que estudar para arrumar um emprego! Contudo, para uma educação libertadora, o emprego deveria ser apenas um dos elementos e não o único objetivo da educação.

Mas essa pedagogia encabeçada pelas corporações não se baseia em conceitos arcaicos. Ela criou uma roupagem pós-moderna. Adotando um psicologismo exacerbado e destemperado, a Pedagogia Nova tem como objetivo fazer a criança agir, mas não se preocupa tanto com o que ela está aprendendo. O professor tem sua função enfraquecida, assim como o conhecimento e o intelecto, úteis para a reflexão. A liberdade é dada através de uma experiência imediata. Nesse sistema, o indivíduo fica incapaz de escolher porque não teve a compreensão das necessidades históricas.[5]

Essa educação forma indivíduos, não só para o processo produtivo, mas também para o consumo. Daí o bum de uma cultura infantilizada comercializada no cinema e nas redes sociais, onde pais e filhos são consumidores com o mesmo nível mental de reflexão.

O que é dado hoje na escola pública, principalmente na educação básica, “está limitado a livros didáticos e, cada vez mais, a apostilas elaboradas por corporações que, no lugar de conhecimentos científicos, veicula os referidos descritores de competências” aos interesses empresariais. Os diretores passam a ser gestores que adotam o léxico da administração: metas, eficiência, qualidade total etc. “As escolas e os professores tornaram-se reféns de índices que esvaziam o sentido público da escola, reduzem o que é dado a pensar (competências em português e matemática, desconsiderando as demais dimensões da formação humana)”, coloca Leher.[6]

A consciência ingênua

O interesse de menosprezar Paulo Freire pelo projeto conservador “Escola Sem Partido” faz parte de um plano de poder que vem se desenrolando desde o período militar. Menosprezo que os governos neoliberais do PSDB e do PT ajudaram a revitalizar. O tipo de cultura que sempre esteve vigente é a voltada para a massificação do ser humano. Dessa forma, para se construir produtores e consumidores em potencial desse tipo de cultura é necessário apenas uma consciência ingênua. A existência de ilhas de criticidade acaba sendo importante nesse mundo, mas revela claramente a concentração do saber em poucas mãos.

Paulo Freire destaca que sem o objetivo de desenvolver uma consciência crítica nas pessoas pode até haver um desenvolvimento industrial e tecnológico, mas a consciência torna-se fanática. Cria-se um homem massificado. O autor, partindo desse raciocínio, enumera o que vem a ser uma consciência ingênua e, sem dúvida, exatamente um tipo de ser desejado pela direita conservadora idealizada por Olavo de Carvalho, Bolsonaro e MBL.

Esse ser apoia-se em “um simplismo, na interpretação dos problemas, isto é, encara um desafio de maneira simplista”. Conclusões apressadas e superficiais. Está mais apto ao fanatismo e a “considerar que o passado foi melhor”. Subestima o homem simples. “É impermeável à investigação. Satisfaz-se com as experiências. Toda concepção científica para ele é um jogo de palavras. Suas explicações são mágicas.” Esse último ponto explica porque muitos dos seguidores de Jair Bolsonaro o chamam de mito.

O detentor de uma consciência ingênua “pretende ganhar a discussão com argumentações frágeis. É polêmico, não pretende esclarecer. Sua discussão é feita mais de emocionalidades que de criticidades; não procura a verdade; trata de impô-la e procurar meios históricos para convencer com suas ideias. É curioso ver como os ouvintes se deixam levar pela manha, pelos gestos e pelo palavreado. Trata de brigar mais, para ganhar mais”.[7] Esses elementos apontados por Paulo Freire é um prato cheio para que aqueles que almejam formar uma massa consumidora, de uma cultura de baixa reflexão e de reprodução fácil, o abominem.

É possível encontrarmos hoje um professor que saiba repetir exatamente os aspectos de uma educação crítica formulada por Paulo Freire, mas que em sala de aula é apenas um depositor. E (o que é mais bizarro) um professor que saiba de tudo isso e seja fiel à extrema direita. Prova de que as propostas de Freire nunca conseguiram ganhar espaço aqui no Brasil a não ser em termos ideológicos. A sua praticidade seria uma afronta aos interesses dominantes, um combustível para a democratização das lutas sociais, o que pode pôr em risco a estrutura tradicional.

Conclusão

A educação escolar está submetida a propósitos intencionais, a uma doutrinação ideológica que está interessada em formar “homens latas” úteis para a reprodução das relações de produção capitalista. Para romper com essa doutrinação, é preciso que o professor conceba a didática como um processo de ensino embasado em uma teoria da educação crítica capaz de formular diretrizes orientadoras da sua atividade.

Também é imprescindível um diálogo da educação com os movimentos sociais empenhados “na produção autônoma de conhecimento original, capaz de criticar os fundamentos da vida capitalista e apontar alternativas para além da sociedade do capital”.[8] Somente assim os trabalhadores terão acesso a uma educação que abrange o conjunto da existência e das potencialidades humanas: científica, artística, tecnológica, histórico-cultural, filosófica etc. e não atulhar um conhecimento inútil para a sua emancipação.

*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

[1] Paulo Freire. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.23.

[2] Roberto Leher. Organização, estratégia política e o Plano Nacional de Educação, 2014.

[3] Paulo Freire, op. cit., p.38.

[4] Zygmunt Bauman. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p.79.

[5] Regina Lopes. Concepções pedagógicas e emancipação humana: um estudo crítico. Selma Garrido Pimenta (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 5ed. São Paulo: Cortez, 2007, p.78.

[6] Roberto Leher, op. cit., p.4.

[7] Paulo Freire, op. cit., p.40.

[8] Roberto Leher, op. cit., 20.

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