Redação Pragmatismo
Saúde 18/Out/2017 às 20:00 COMENTÁRIOS
Saúde

"Hoje, a medicina está americanizada, visa mais o lucro que o paciente"

Publicado em 18 Out, 2017 às 20h00

“A medicina deixou de ser humanista. A educação do médico está americanizada, ou seja, visando mais o lucro que o paciente”. Hoje com 71 anos, médico pioneiro em Brasília fala sobre a perda de valores da medicina atual

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Ele escutava as notícias da construção da nova capital pelo rádio, em Caxias do Sul (RS). Ainda no início das obras, começou a sonhar com a vida em Brasília. Quando o médico residente Claudio Luiz Viegas chegou à cidade, no início de 1970, fincou raízes no Hospital de Base. Lá, trabalhou por mais de 45 anos. Perdeu as contas de quantos pacientes atendeu. “Tinha dias que haviam 20 consultas agendadas, mas, no fim do dia, tinha recebido 40 pessoas”, conta o pneumologista.

Hoje, com 71 anos, o médico está aposentado, mas continua a serviço da medicina. Visita, a cada 15 dias, uma paciente acamada vítima de um AVC, em Planaltina. “Não tenho clínica, nem trabalho em hospitais, mas, se me chamam nas casas, eu atendo”, ressalta. Claudio testemunhou a tecnologia avançar, a medicina mudar e perder alguns valores. “Muitas vezes, o médico sequer sabe a roupa do paciente, como ele se comporta, se usa óculos”, critica. O hábito que ficou ainda mais forte depois do intercâmbio em um hospital especializado em câncer, em Milão (Itália), na década de 1970. “Meu pai era um humanista. Estimulava a gente a pensar no próximo para nos sentirmos bem”, pondera.

Hoje é Dia do Médico. Para marcar a data, em uma viagem no tempo, o médico pioneiro revisitou memórias, contou experiências e ponderou sobre o futuro da saúde em uma entrevista ao Correio. Claudio, o filho mais velho entre quatro irmãos, é mais que um morador de Brasília — onde cultiva um casamento de mais de 40 anos, teve quatro filhos e cinco netos —, é um entusiasta. “Gostaria de estar trabalhando. Preciso da sensação de estar ajudando alguém.”

Para ele, a maior falha está no ensino da profissão — a capital federal conta com faculdades, com cerca de 400 vagas a cada semestre. “A medicina deixou de ser humanista e universal. A educação do médico está americanizada, ou seja, visando mais o lucro que o paciente”, destaca o ex-coordenador da residência médica do Hospital de Base e professor fundador da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS). A bagagem rendeu uma livro lançado no ano passado: Cinquenta anos de residência médica no Hospital de Base.

A chegada a Brasília

No curso primário, eu olhava o mapa e tinha um quadrilátero no centro do Brasil. Os professores diziam: “Aqui será a nova capital do país”. Eu, pelo rádio, ouvia as notícias sobre a construção de Brasília. Anos depois, escutei o dia inteiro a transmissão da inauguração da cidade. Isso me despertou a vontade de morar aqui. A minha universidade mantinha um convênio com a Fundação Hospitalar do DF — aqui não havia o número necessário de médicos. Ninguém queria vir para cá. Os alunos vinham ainda na graduação. Foi quando escolhi Brasília. Poderia ter ido para o Rio de Janeiro, São Paulo ou Belo Horizonte. Quando eu cheguei aqui, no início do ano 1970, a capital tinha status de grande cidade, mas era pequena em termos de população — chovia naquela época (risos). Aqui ainda se batalhava contra doenças infecciosas (malária, poliomielite, tuberculose). Era a mesma situação que vivemos hoje com a dengue, chicungunha e zika. Parece que não conseguimos evoluir nesse aspecto traiçoeiro e antigo.

No Hospital de Base

O Hospital de Base acolhia os estudantes. Era a unidade de saúde mais moderna do Brasil. Tínhamos a oportunidade de permanecer lá. Fazíamos o concurso para ficar. Tive contato com profissionais do mundo inteiro. Professores e médicos da Inglaterra, Estados Unidos, França… São tantas lembranças, pacientes. É muito emocionante você trazer de volta à vida uma pessoa que foi desesperançada, que passou por vários médicos. Ver um paciente desses bem é impagável. Da mesma forma que dói quando a pessoa não terá cura. Já tive vontade de dizer: “Não fale assim com essa pessoa. Ela terá só meses de vida”. Pela ética me calei. Quantas vezes eu tinha 20 pacientes, mas atendia 40. Estava lá para servir o paciente. Se me vendar, sei entrar no hospital. Aquele é um caminho sem volta! Nos primeiros dias de aposentadoria, senti falta, fiquei preocupado. Mas tem gente muito capaz pra tocar esse trabalho. Não é fácil, mas é preciso confiar.

As mudanças

Saúde não é só não ter doença. É conseguir sentar para bater um papo, ter bem-estar, ter água encanada. Faço parte de uma geração sem pressa. Vejo as pessoas correndo enlouquecidas. Olhe o alto uso de psicotrópicos. É antidepressivo, remédio para dormir, ansiolítico. O que está acontecendo com a humanidade? Um exemplo é o barulho das cidades. Essa crescente altera o nosso sistema hormonal, que prejudica o sistema imunológico. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que o ideal para o ser humano é uma exposição de até 55 decibéis, mas qualquer cidade ultrapassa isso. Não respeitamos o ciclo do sono. Dorme-se mais tarde e acorda-se mais cedo. O homem não foi criado para isso. Ingere alimentos que não correspondem à dieta e aos horários do dia. O homem não está respeitando os seus limites.

Altos e baixos

Trabalhei com tuberculose em um período de mudanças. As novas drogas estavam aparecendo em meados da década de 1980. Era uma satisfação! Logo depois a medicina entristeceu. Apareceram doenças imunossupressoras, como a Aids. É desesperador saber que mesmo com todas as medicações em mãos, o tratamento não adiantaria, porque a pessoa estava perdendo a imunidade e morria aos poucos. Isso foi muito forte naquela época e hoje está voltando a acontecer. Veja os vírus e as bactérias cada vez mais resistentes. A dengue era uma coisa e hoje se transformou em outra. Temos chicungunha, zika com o mesmo vetor e pouco controle sobre isso.

O papel do médico

Fui professor da Escola Superior de Ciências da Saúde por 10 anos. Notava pequenas interpretações do que era e do que é a medicina. Temos uma formação mais americanizada, que trabalha visando lucros. O médico não é culpado disso, a sociedade que faz essa exigência. O paciente que tem plano de saúde, por exemplo, e não quer saber quem é o profissional, mas, sim, a carta de atendimento. Ninguém pensa mais no “meu médico”. Aquele que ia passando por gerações. Às vezes, o doente nem sabe o nome do profissional. Da mesma forma é o médico. Com isso, a humanização do tratamento sai perdendo.

O que fazer?

Insistia com os alunos que é essencial a relação médico-paciente. Você precisa escutar, entender, depois tocar e pedir exames. Muitas vezes eu perguntei aos alunos: “Que roupa o paciente estava vestindo? Usava óculos? Como estava penteado?”. Metade não sabia. Não prestaram atenção naquele ser humano. São detalhes que integram o tratamento. Para tratar uma pessoa tem de haver sentimento. Hoje o médico valoriza mais um equipamento que um paciente. Antes se conversava com o doente. Agora, se pede uma ressonância magnética sem dar bom dia. A medicina deixou de ser humanista e universal. Lembro-me que não tinha horário e via muitos colegas na mesma situação. Hoje, infelizmente, burlam o ponto para não trabalhar. É um absurdo. Atrasar-se e compensar depois é absolutamente normal. Vivi isso no hospital em que trabalhei em Milão. Mas deixar de atender conscientemente não é ético.

A saúde pública

O DF não está muito diferente do restante do país: está tudo ruim. Participo de congressos, converso com pessoas de outros lugares e sempre aparecem os mesmo problemas, com exceção de algumas cidades. Os governos não têm prioridade para saúde, segurança e educação. Acham que isso não é importante, mas é o que a população precisa. Este ano fiquei três meses na Austrália. Fiquei observando o serviço de saúde. A rede pública contempla o cidadão. Nos postos de saúde de lá, os médicos e enfermeiros esperam os pacientes. A diferença é a mentalidade. Lá, o Estado se preocupa com isso. O que mais agrava a crise é a falta de futuro. Não se tem projeto. É uma calamidade. Se é um país doente, terá mais gastos com isso. É preciso desenvolver a questão. Os gestores não conhecem a realidade da população.

Otávio Augusto, Correio Braziliense

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