A aventura semipresidencialista
Valter Carvalho*, Pragmatismo Político
Em regimes democráticos, poucos temas são imunes ao poder de reforma das maiorias governantes legitimadas nas urnas. Em nossa Constituição, os constrangimentos constitucionais ao poder de reforma dos governantes limitam-se às liberdades fundamentais, as cláusulas pétreas, a forma federativa e a divisão tripartite dos poderes.
No entanto, se não há limites legais para além dos temas mencionados, o mesmo não se pode afirmar quanto à legitimidade. Governos democráticos devem, necessariamente, serem responsivos perante cidadãos e eleitores (Dahl, 2005). A autonomia decisória, característica dos governos representativos, esbarra – embora não de forma imperativa –, na necessidade de ajustar suas decisões às demandas e críticas da opinião pública e dos cidadãos (Manin, 1995).
Essa atitude responsiva não tem sido observada no governo de Michel Temer, que sem um mandato para realizar reformas profundas e de efeitos incertos vem, de forma açodada, impondo as à sociedade. Entre as reformas institucionais, além das que alteram o sistema eleitoral (Distritão), a mudança do sistema de governo foi aventada. Dentre as propostas lançadas como “balão de ensaio”, além do parlamentarismo, inclui-se o sistema semipresidencialista, que repercutiu positivamente entre ministros do Supremo Tribunal Federal (Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso) e membros do PSDB. Nesse sentido, devemos perguntar: o semipresidencialismo é um sistema adequado para as condições políticas e sociais do Brasil? A resposta exige um exame mais “técnico” do tema, bem como das condições políticas com as quais se pode pensar sua implantação.
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O sistema semipresidencialismo combina atributos do presidencialismo puro e parlamentarismo puro, adotado hoje em Repúblicas como Portugal, França, Rússia, Ucrânia, Romênia, Egito, etc. Se caracteriza pela eleição direta do presidente, que exerce a chefia de Estado. O presidente tem atribuições importantes, tais como: gerir a política externa, chefiar as forças armadas, nomear funcionárias, vetar leis, etc., poderes que vão além daquelas funções simbólicas como são as de chefe de Estado no parlamentarismo puro – em geral monarcas decorativos.
Por sua vez, é notório que o semipresidencialismo comporta coabitação em termos de poder entre presidente (chefe de Estado) e Primeiro-Ministro (chefe de governo) (Sartori, 2000). Assim, Primeiro-Ministro e presidente têm funções que coexistem e se complementam. É atribuição do presidente nomear o Primeiro-Ministro, que embora possa ser destituído pelo parlamento, por meio do voto de desconfiança, o presidente tem atribuição de dissolver o parlamento. Assim, se no parlamentarismo puro o parlamento tem poder de destituir o governo por meio do voto de desconfiança, no semipresidencialismo há esse poder também, onde o poder de dissolver o parlamento conferido ao presidente é um instrumento de indução à cooperação e estabilidade do governo (impede casuísmos do parlamento).
A principal virtude do semipresidencialismo é que, por ser uma espécie de poder moderador, o presidente não é arremessado no seio do conflito-político partidário, como ocorre no presidencialismo puro. Por essa razão, a maneira do parlamentarismo puro, a solução das crises pode ser alcançada de forma menos dramática e sem riscos institucionais. Normativamente isso parece mais vantajoso, se comparado ao presidencialismo puro, cujo mandato fixo é um empecilho à resolução de impasses. Em outros termos, por se tratar de um sistema com duas cabeças, o semipresidencialismo comporta à coabitação entre os dois chefes (de Estado e de governo). Há riscos de maiorias divididas, como há no presidencialismo puro (Congresso e Executivo). Porém, a resolução das crises de forma rápida, sem os riscos institucionais do impeachment no presidencialismo puro, é possível graças ao poder de formar e demitir governos conferido presidente.
No entanto, modelos normativos, quaisquer que sejam eles, será, necessariamente, mediado pelas condições contextuais – cultura política – que cercam cada país em particular (Alencastro, 1993). Assim, para funcionar a contento, eles não prescindem da adesão e respeito aos seus ritos por parte dos atores políticos em competição.
Portanto, não obstante a coabitação entre presidente e parlamento no semipresidencialismo preservar o presidente do conflito político-partidário, mediante seu poder de formar e demitir governos – solucionando de forma ágil e menos dramática as crises –, não está descartada hipótese em que presidente eleito de forma direta, com agenda própria, munido de poderes relativamente fortes, apresente forte assimetria ideológica com a mediana do Congresso. Neste caso, teremos instalada crises não muito diferentes das que observamos no presidencialismo puro, o que requer muito mais de um presidente do que prescrito pelos modelos normativos.
Por outro lado, se o mandato fixo no presidencialismo puro é acusado de engessar e prolongar as crises, o poder de formar e demitir governos do presidente no semipresidencialismo não nos assegura de que será respeitado em seus ditamos normativos. Em outras palavras, há risco potencial, considerando nossa cultura política, desse poder transformar-se em um gatilho prontamente armado para derrubar governos não alinhados programaticamente com o presidente eleito. Essa hipótese é tanto mais real quando sabemos que uma vez eleito de forma direta por um eleitorado nacional, conservando poderes relativamente fortes, o presidente continuará despertando na nação o sentimento de mudança que sempre caracterizou nossa cultura presidencialista (Lamounier, 1992). Por essa razão, o mandato fixo do presidente no presidencialismo puro, tido como um de seus mais graves defeitos, pode não ser tão ruim assim, dado que constitui um forte incentivo à cooperação, na medida em que apear um governo não será tarefa fácil e sem riscos (Mainwaring e Shugart, Matthew, 1993).
No entanto, sem desprezar as virtudes do semipresidencialismo, urge compreendemos que, mais que reformar instituições – tarefa imprescindível para avançar e consolidar democraticamente o país –, é premente que entre os atores políticos haja crença na democracia enquanto institucionalização da incerteza (Przeworski, 1994). Ou seja, a submissão de todos os interesses à lógica da competição, sob a égide das liberdades básicas – expressão, organização e sufrágio inclusivo. Por incerteza não se deve entender, equivocadamente, império do impossível e imprevisível, mas apenas que o marco institucional deve indicar o que é possível. Assim, para gerar a certeza política necessária à aposta democrática, o marco institucional deve conter estabilidade e regularidade necessárias à ação dos atores no longo prazo. Mais que reformas das instituições, a classe política precisa curvar-se à lei de bronze da democracia, expressa na alternância de poder e no respeito à vontade soberana das urnas.
Não bastasse a proposta (da mesmo forma que o parlamentarismo) nascer com a pecha do casuísmo, é oportuno se perguntar sobre a legitimidade do governo Temer para realizar reformas que regulam o conflito político, sobretudo do sistema de governo, tendo em vista a forma como chegou ao poder. Embora não ilegais, aos olhos da sociedade mais ampla e de parte considerável dos atores políticos, as reformas, sobretudo do sistema de governo, soam como casuísmo e subversão das regras balizares da democracia.
Não é desprezível que parte considerável dos atores políticos rejeitem reformas como essa. Em meio a tanta incerteza e dissenso, elas representam os interesses conjunturais mais estreitos de parte da elite política e empresarial que, ao chegar ao poder por meios não democráticos e nele pretender se manter, tem se mostrado disposta a dilapidar à confiança social e política nas instituições e estabilidade democráticas.
*Valter Carvalho é doutor em ciência política pela PUC-SP, professor e pesquisador na UFPI e Uninassa, autor de “Atores partidários e entrada estratégica em competição eleitoral de múltiplas arenas: a experiência brasileira”. Edufpi, 2014 e colaborou para Pragmatismo Político.
Bibliografia
Alencastro, Luiz Felipe. Cultura democrática e presidencialismo no Brasil. Novos Estudos Cebrap, 1993.
Dahl, Robert. Poliarquia – governo e oposição. São Paulo: Edusp, 2005.
Lamounier, Bolívar. Brasil: rumo ao parlamentarismo? In. Valenzuela, Arturo e Lamounier, Bolívar. A opção parlamentarista. Editora Sumaré, 1992.
Mainwaring, Scott e Shugart, Matthew. Juan Linz, presidencialismo e democracia: uma avaliação crítica. Novos Estudos Cebrap, 1993.
Manin, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, 1995.
Przeworski, Adam. Democracia e mercado. Rio Janeiro. Editora Relume Dumará, 1994.
Sartori, Giovanni. Ingeniería Constitucional Comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. México, Ed. Fondo de Cultuta Econômica, 2000