Redação Pragmatismo
Música 24/Ago/2017 às 15:14 COMENTÁRIOS
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Rap, uma declaração de amor

Publicado em 24 Ago, 2017 às 15h14
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Felipe Honorato*, Pragmatismo Político

O Brasil, para um jovem negro, é um beco sem saída. Uma boa parte deles é fadada a um trágico destino: morrer prematuramente, vítima da miséria, ou então nas mãos da violência, seja ela cometida pelo Estado ou pelo crime. Uma outra porcentagem que sobrevive, “contrariando as estatísticas”, é condenada à periferia: à periferia geográfica, morando em regiões distantes que nossos governantes insistem em ignorar, à periferia de nosso sistema educacional, à periferia de nosso mercado de trabalho – “as condições do preto sobreviver são muito remota”, disseram os rapazes do Sistema Negro. Alguns raros atingem uma vida de classe média, menos ainda são aqueles alcançam a classe alta.

Meus pais e meus avós lutaram muito. Para minha sorte, todos eles sempre enxergaram muito valor na educação. Cresci sem saber o que é perder aula por falta de professor, sem esperar meses para fazer um exame, sem sentir o gosto amargo da violência. Na maioria dos ambientes por onde eu circulo, sou o único negro.

Aí se encontra a outra faceta do beco sem saída. Há espaços que a sociedade não vê como ocupáveis por não brancos e, assim sendo, todos os dias é uma luta para que nos apropriemos deles, para que aqueles lugares também sejam vistos como seu.

Quando entrei na universidade pública, em 2009, o diálogo sobre as cotas raciais estava mais quente do que nunca. A defesa contra as cotas, que, supostamente, seriam uma outra forma de segregação, era veemente. Olhava minha turma, com mais de 40 alunos, onde éramos apenas dois negros, e ficava me perguntando: vagas de quem estamos roubando? (como o senso comum, do qual nem a imprensa se livrou, muitas vezes pregava). Alguns anos depois, quando minha família mudou para um condomínio fechado, os conflitos ficaram ainda mais latentes: fui barrado na portaria, por terem achado que eu era um pedreiro tentando entrar no portão de moradores para burlar a segurança, e minha irmã, ao atender um funcionário da empresa de saneamento que veio entregar uma notificação de consumo de água, foi assim indagada: entregue essa carta ao seu patrão – uma moça negra em um condomínio fechado nunca poderia ser uma moradora, não é mesmo?

O Brasil é assim: nasça em uma minoria e esteja pronto para sofrer as consequências. Consequências de quê? De ser negro, mulher, homossexual, índio, nordestino e continuar existindo, lutando, dia após dia.

Foi um baque grande chegar a esta conclusão. Dois pilares foram essenciais para que eu encontrasse minha identidade – negro, brasileiro, ser de luta e resistência, parte integrante de uma nação que fez e faz de tudo para nos expelir, mas pela qual meus antepassados deram o sangue e a vida: os contos de Afonso de Lima Barreto e aquele ritmo musical que KL Jay, mais de uma vez, disse ter salvo uma geração inteira de pessoas negras mundo afora – o rap!

O meu pote dourado no fim do arco-íris encontrei em um blog chamado Subeversom. O nome, muito sugestivo, era mais do que ideal para o que aquela plataforma oferecia: as grandes pérolas do que hoje se denomina rap underground, rap de protesto, que Chuck D, vocalista do Public Enemy, chamou de “CNN do povo negro” – “a voz dos que não tem voz”. O primeiro álbum que baixei por lá foi “The Main Ingredient”, do duo nova-iorquino Pete Rock & C.L. Smooth; perdi as contas de quantas vezes, só no primeiro dia, ouvi “Carmel City”, faixa do disco que, inicialmente, mais me chamou atenção – o sabor dos primeiros versos desta música ainda vai custar a deixar de ser delicioso aos meus ouvidos: “let me take you on a through Carmel City”.

Daí, não parei mais. Ouvi os grandes clássicos da Deathrow Records, os sons de Detroit, passei por Chicago, terra de Common Sense, pela Filadélfia, mas o encantamento mesmo,a primeira paixão, quem me deu foi a Big Apple: Nas, Notorious BIG, Mobb Deep, Wu Tang Clan, Gangstarr, A Tribe Called Quest, Black Moon, Smif and Wessun, The Fugees, KRS-One, Big L, Big Pun, The Beatnuts, os freestyles do Streacht and Bobbito Radio Show….. Depois do neorealismo italiano, o rap nova-iorquino dos anos 90 foi o movimento artístico que mais me encantou e me empolgou!

Depois do encanto com o rap estadunidense, me aventurei pelo rap europeu. O rap de Nova Iorque é extremamente realista, retrata a rotina urbana e periférica de forma tão verossímia que, às vezes, em algum verso de Havoc ou Progidy, você consegue se ver andando pelas ruas de Queensbridge tentando ganhar a vida. No rap francês encontrei poesia, um lirismo que o colocava de um lado oposto a minha primeira paixão. A beleza das letras, a sofisticação dos beats eram usadas para expôr a luta diária daqueles que faziam rap – em sua maioria imigrantes ou filhos de imigrantes, de origem sub-saariana ou árabe – nas grandes metrópoles francesas, com destaque a Paris e Marselha. Quem quiser uma prova empírica disto que estou falando, escute talvez aquele que seja o maior clássico do rap de lá: Prose Combat – Mc Solaar nos microfones e Jimmy Jay na produção!

L’ex de mon ex, n’est pas tex ni mexicain
C’est un mec honnête net poussé par le bien
Bien entendu il se place avec classe
S’efface et fait surface tout se passe par passe passe
Passe-moi le mic et capte ces mots
“Qui sème le vent récolte le tempo”
Mon cerveau est pour mon stylo le moteur
Paix au système D, respect à Mac Gyver
Quand, avec une allumette il fait un catamaran
C’est marrant et je rie comme Fanny Ardant
Occasionnellement pourtant mon bic se bat
Avec l’art subtil du prose combat

La Cliqua, Supreme NTM, Sléo, Democrates D, Lunatic, Menelik, Les Sagues Poets de la Rue… Creio que se o francês fosse menos “tabu” pelo mundo, todos eles seriam estrelas reconhecidas de Nice a Hong kong.

Curiosamente, o rap brasileiro comecei a ouvir apenas após conhecer estas outras “escolas”. Isto porque sempre fui compelido, por algumas pessoas próximas a mim, a ouvi-lo: “Isso aí tem muito palavrão, não é música pra criança”, “esse pessoal só fala de morte e tiro”, “tudo, pra esses rappers, é preconceito”. Apesar de estarmos envoltos por essa realidade, ouvir a verdade incomoda.

Se podemos dizer que Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior foram os autores que inventaram o Brasil, não acredito que seja exagero afirmar que Racionais Mcs, RZO, Mv Bill, Sabotagem, Sistema Negro, Marcelo D2, DMN e todo aquele pessoal que faz o rap noventista dentro do eixo Rio-São Paulo reinventaram o Brasil. Eles vieram, através do empirismo da vida de negro na periferia, reafirmar que o nosso país não é e nunca foi uma democracia racial, como o subdesenvolvimento é nosso projeto nacional, que o Brasil é um paraíso para 1% e difícil para os outros 99%.

“Digo à você bem mais o que sei, se acha que o Brasil, não tá bom, para os ricos está bom, pois eles sempre comem, não passam fome, e é o pobre que paga, sem saber que ele paga”; “2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado e durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela
Vida dura. Colocando flores sobre a sepultura. (“podia ser a minha mãe”). Que loucura.”; “ Aqui no Brasil, tudo é muito natural, te xingam, humilham, desprezam, na maior cara de pau” – versos de antropólogos sociais formados nas ruas que não deixariam Milton Santos, Celso Furtado ou Darcy Ribeiro desapontados.

Como já relatei, não cresci nas quebradas, não passei por metade do que todos estes cânones do rap já passaram. Para mim, a questão no rap nacional foi representatividade: ter consciência de que o racismo não fazia parte apenas da minha rotina e que lutar não era uma opção, mas sim uma obrigação, a única saída possível.

Certa vez, uma pessoa me perguntou: como alguém tão inteligente como você pode gostar de rap? Fico refletindo: o que seria de mim sem o rap? “ouvir o hip-hop é uma coisa normal, entender o hip-hop é onde está o mal”.

Feliz aniversário, rap! Muito obrigado por tudo! Eu amo você.

*Felipe Honorato é graduado em Políticas Públicas e mestrando em Estudos Culturais pela USP, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça pela UnB e colaborou para Pragmatismo Político.

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