Política

Algumas leituras sobre a votação que silenciou a investigação contra Temer

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Medo e cinismo no parlamento e no governo: algumas leituras sobre a votação que silenciou a denúncia de corrupção contra Temer

Eduardo Tavares de Farias*, Pragmatismo Político

O resultado da votação na Câmara dos Deputados sobre a abertura do processo de investigação de Michel Temer, no dia 2 de agosto, movido pela Procuradoria-Geral da República (PGR), envolvem os sentimentos de indignação, impotência e vergonha na sociedade brasileira. Mas o que essas sensações têm a dizer sobre o cenário político atual e quais as causas? O filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) e o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) podem ajudar a ler os acontecimentos recentes.

Indignação: um ano antes da votação sobre a denúncia de Temer, os mesmos deputados aprovaram a abertura do controvertido processo contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Aceitaram a acusação de irresponsabilidade fiscal baseada nas chamadas pedaladas fiscais, um procedimento recorrido por antecessores e por atuais governadores, mas que nunca foi motivo de investigação. O resultado foi a deposição de Dilma. Na votação atual, os parlamentares decidiram ignorar, incoerentemente, a séria acusação de crime de corrupção passiva de Temer. Os indícios apresentados pela Polícia Federal (PF) e avaliado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) seriam suficientes para derrubar ou impulsionar uma renúncia de qualquer político da Alemanha, Suécia, França, Uruguai etc., mas no parlamento brasileiro os indícios perderam sua razão de ser. A vitoriosa incoerência se reproduziu por 263 vezes, número de votos dos deputados que impediram a investigação. Era necessário que no mínimo 342 dos 513 representantes fossem favoráveis à abertura do processo.

Impotência: este sentimento provêm de um fato incontestável: a vontade da maioria da população não está sendo levada em consideração, apesar da apatia das manifestações nas ruas. A rejeição de Temer atingiu 95% (a maior desde 1989), segundo a pesquisa divulgada pelo instituto Ipsos no dia 25 de julho.

Vergonha: o parlamento se converteu num picadeiro de exibições de falação odiosa, mentiras, ignorância e até mesmo de piruetas retóricas para salvar Temer: “Pelo não ao arquivamento da denúncia, mas para que ele seja investigado após deixar o mandato eu voto sim”, argumentou Rogério Marinho do PSDB. Teve até deputado que, com o nome de Temer tatuado no ombro, se manifestou contra as pesquisas de Institutos conhecidos e durante a votação passou parte do tempo pedindo “nude” pelo Whatsapp, caso do Wladimir Costa do SD/PR.

Mas nesse jogo de sentimentos a razão parece merecer papel protagonista para tentarmos entender o que está acontecendo com a política e com os políticos no Brasil. Baruch Spinoza já havia se dado conta, no século XVII, que muitos políticos criam mais armadilhas aos individuos do que encontram maneiras de ajudá-los. Os políticos seriam mais hábeis do que sábios, segundo o filósofo holandês. Uma coisa interessante que Spinoza sustenta no livro Tratado Político é que os políticos se esforçam em prevenir a malícia muitas vezes guiados pelo medo mais que pela razão.

No caso da votação parece fazer sentido pensar que alguns deputados tenham votado motivados também por medo de sofrerem retaliações de seus “aliados” ou financiadores. Mas de onde vem esse medo? Não soa contraditório afirmar que nasce e se desenvolve a partir de atos ilícitos ou moralmente ofensivos cometidos pelos representantes. O fato do político ter cometido algum ato ilícito eleva o sentimento de medo e consequentemente aumenta a busca de autoproteção. As decisões de um parlamentar, por exemplo, deixam de ser destinadas aos seus representados; o cargo que opcupa passa a ser exercido com dupla função: a de representante e a de representado. Aqueles que o elegeram perdem sua voz na sociedade que se diz democrática e representativa. O filósofo francês Jacques Rancière chamou esse povo, apropriadamente, de “parte dos sem parte”. O medo na política, como se pode ver, vulnerabiliza o representante e mais ainda o representado.

O STF, a mais alta corte jurídica do país, conduz atualmente cerca de 530 investigações contra políticos. O número pode soar expressivo, mas não é. O Brasil não é só um país no qual opera a conhecida impunidade, é também terra dos arquivamentos de pedidos de investigação. Pode parecer contraditório afirmar isso em tempos de operação Lava Jato, mas também não é. Além do arquivamento dos pedidos de investigação contra o senador Aécio Neves (PSDB), o impedimento da denúncia contra Temer na Câmara é também um exemplo expressivo de arquivamento sistemático, um círculo vicioso que se desenvolve graças ao medo que provêm do “rabo preso”.

Spinoza parece ter razão ao sustentar o medo como motor para a toma de decisão de políticos. Este medo, embora esteja relacionado ao campo das “emoções”, não é simples manifestação irracional, pelo contrário, exige fazer cálculos para cada passo no exercício do cargo. A distinção que o sociólogo francês Pierre Bourdieu faz entre saber “cínico” e saber “clínico” também é uma possibilidade de leitura da votação contra a denúncia de Temer e da relação que se estabelece entre políticos e o medo.

O saber cínico para Bourdieu está relacionado ao uso de uma estratégia que permita utilizar as regras do sistema (político, por exemplo) para tirar o máximo de vantagem, quer a situação seja justa ou injusta. Por outro lado, o saber usado clinicamente é aquele que, mesmo conhecendo o funcionamento da sociedade, se destina ao combate do que é impróprio, moralmente ofensivo, gerador de dano e sofrimento. A rejeição de parlamentares com respeito à denúncia contra Temer é a manifestação viva do uso cínico do saber por parte dos deputados. Por que? A maioria dos argumentos dos 263 parlamentares tentaram vender a ideia de que a manutenção de Temer é condição necessária para a ordem e a estabilidade do país. Suposição que tende mais ao engano que às vias de fato. Reflitamos:

1) Dificilmente um governo ilegítimo será o promotor de unidade e diálogo entre os diferentes atores do tabuleiro político. A noção de “normalidade” nas relações de forças deixou de existir porque a assunção de Temer resultou de um (neo)golpe de Estado. É mais provável que o desacordo e o conflito se intensifiquem até a realização da nova eleição presidencial.

2) A acusação de envolvimento em casos de corrupção de um “presidente” é grave e um fator que desequilibra mais que equilibra. As motivações pela investigação de Temer deixa de operar prioritariamente no campo político (como foi o caso da ex-presidenta Dilma) e passa a ganhar peso com razões jurídicas. Como a abertura de processo de investigação contra Temer deve ser aprovada pela Câmara, o conflito deixa de operar só entre os políticos e passa a envolver também os juizes. Parlamento, PGR e STF, por exemplo.

3) A desaprovação da gigantesca parcela da população demonstra que o governo não tem o apoio popular com relação às medidas que devem ser tomadas. Essa rejeição também pode ser entendida como perda de confiança; com isso, as ações do governo passam a ser vistas como ameaça e não como garantia de bom funcionamento. A possível consequência é o ressurgimento das manifestações.

4) Políticos entram e saem como ministros do governo Temer por serem envolvidos em escândalos de corrupção, fato que impacta diretamente no planejamento e nas execuções das medidas necessárias para colocar o país nos trilhos. Sete ministros já foram afastados do cargo ou pediram demissão (a maioria por ter sido vinculada à corrupção). Em uma única canetada o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, recomendou ao STF a abertura 320 inquéritos contra políticos (com base nas delações da Odebrecht); entre eles haviam pedidos de investigação de nove ministros de Temer.

Medo e cinismo parecem ser fatores íntimos e inseparáveis dos acontecimentos políticos relacionados ao parlamento brasileiro e ao atual governo. Uma leitura sobre a votação e as manobras de Temer passam indiscutivelmente pela percepção desses dois elementos. Além disso, tais fatores trazem à luz o enfraquecimento da vontade popular, a concentração de poder nas mãos de deputados irresponsáveis, a tendência às ações que fragilizam a gestão pública e a praticamente impossível conquista da estabilidade (econômica ou política) antes de nova eleição.

*Eduardo Tavares de Farias é jornalista e mestrando em filosofia pela Universidad de Costa Rica e colaborou para Pragmatismo Político

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