Racismo não

Por que seríamos diferentes dos supremacistas brancos de Charlottesville?

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Charlottesville é aqui: por que o brasileiro acha que é diferente do americano? O racismo brasileiro é sonso e indulgente. Covarde e dissimulado. E isso o torna ainda mais perigoso

Confrontos entre supremacistas brancos e contramanifestantes em Charlottesville

Joice Berth*, Justificando

O Brasil é um país de exaltação escancarada da brancura. Ama-se e exalta-se a Europa como berço imaculado da civilidade, porque é branca, caucasiana no estado mais puro, com pessoas de cor e traços reproduzidos o tempo todo nos meios de comunicação e que pautam o padrão de aceitabilidade social vigente.

Odiamos o Brasil. Porque o Brasil é negro. O segundo maior contingente de pessoas negras fora do continente africano. A pequena África dos povos primitivos e de modos rudes e grotescos que tanto criticamos por aqui. Coibimos todo e qualquer resquício de africanidade expressa, exceto aqueles que são convenientes ou pitorescos, aqueles que corroboram com o exotismo tão alardeado como característica inerente ao povo negro.

exótico
adjetivo
1. não originário do país em que ocorre; que não é nativo ou indígena; estrangeiro.
2. que é esquisito, excêntrico, extravagante.

Não gostamos de ver pessoas negras, exceto quando estão em estado crônico de sofrimento social. Entramos nos lugares onde a brancura é a regra e nos sentimos muito bem, jamais notando a ausência de pessoas negras nesses espaços, exceto quando é pra criticar as falhas na política.

Porque o brasileiro se choca com o racismo norte-americano e não olha para o próprio?

Usamos pessoas negras como ratinho de laboratório, “pesquisando” favelas como se fossem fenômenos naturais ou causados pelas próprias pessoas que estão socialmente confinadas ali, “pesquisando” genocídio da população negra e violência policial entre políticos e pensadores brancos, se isentando solenemente da culpa por 4 séculos de escravização de pessoas negras, herdada dos antepassados brancos e que ainda se colocam contra ações afirmativas de equiparação da exploração empregada como estruturante econômica deste país.

Não ouvimos pessoas negras. Não lemos pessoas negras. Não admitimos sequer que um ser humano da pele preta possa pensar e produzir conhecimento, tanto acadêmico quanto empírico, que valha para norteador intelectual e aporte reflexivo frente as situações diversas, tanto políticas quanto sociais.

Não queremos conhecer a cultura que deriva da presença dos povos africanos no nosso país e quando o fazemos, somos cínicos em usurpar, distorcer e excluir o componente cultural africano que é formador dessa cultura.

Estimulamos descaradamente, ainda em 2017 a continuidade dos regimes de miscigenação criminosa e histórica, ora embranquecendo a presença negra que ajudou a construir a história do país, ora apagando todos os resquícios da produção negra tanto na África quanto no Brasil, ora incentivando a objetificação dos corpos negros e o confinamento afetivo de mulheres negras no papel de subserviência sexual, pelo fetiche ou ocultamento das qualidades humanas em detrimento dessa prática que também é histórica.

Poderia escrever um livro sobre como funciona o racismo por aqui.

Mais um, entre tantos que já existem em vão, pois em nenhuma roda de discussão composta por pessoas brancas, a autocrítica racial está presente, nenhuma dessas referências literárias são sequer consideradas importantes.

Estudamos Friedrich Nietzsche, mas esquecemos que Abdias Nascimento existiu.

Estudamos os Freires, Gilberto e Paulo, mas, quem é Sueli Carneiro ou Beatriz Nascimento mesmo?

Assistimos passivos, a maior emissora do país, propagar o falacioso e equivocado racismo reverso em um programa que se propõe a realização de discussões sérias, através do uso da inconsciência racial plantada pela branquitude como tática de alienação e aceitação do lugar de inferioridade construímos para sujeitos negros.

Tudo isso é feito sem a menor autocrítica necessária, que parte do entendimento fundamental de como nossa sociedade está estruturada e estruturando as relações sociais que se mantém hierarquizadas, em nome de uma supremacia que é branca e que repousa tranquilo no berço esplêndido dos privilégios construídos às custas do vilipêndio social, político e econômico de uma minoria (negra e indígena) que vem sendo sistematicamente tolhido do acesso a direitos fundamentais e do usufruto dos confortos que sua mão de obra produz.

Por que achamos que somos diferentes dos supremacistas brancos de Charlosttesville?

Se estamos em um looping de opressões sistêmicas, produzindo e usufruindo dos privilégios que ela cria em todas as áreas sociais, estamos exercendo à la “jeitinho brasileiro”, todos os atos que estamos execrando, horrorizados em assistir via redes e meios de comunicação, que acontecem no EUA.

Somos quintal do imperialismo norte-americamos e almejamos claramente sermos como eles, colocados supostamente mais próximos da civilização e superioridade europeia.

Diariamente, jovens negros são hostilizados e assassinados pela polícia que apoiamos e não nos surpreendemos com isso.

Quilombolas e indígenas vêm sendo eliminados em massa e em nome do monopólio de terras e riquezas que os pertence, por direito real e não reconhecido até hoje, mas não estamos nos surpreendendo com isso.

Assistimos passivos, diversas violências nazifascistas, tanto verbais, quanto simbólicas e físicas, direcionadas as pessoas negras e não passamos do “repúdio” acrítico e cinicamente isento de qualquer revisão concreta do comportamento micro e macro social da branquitude.

E o que dizer do descaso com todos os Rafaeis Bragas, encarcerados nos presídios físicos ou simbólicos, como o preterimento profissional ou os movimentos anônimos dentro das universidades contra os cotistas.

Ou seja, salvo a covardia e que está no íntimo do brasileiro comum e que nos impede de tomar a iniciativa de olharmos criticamente para nós mesmos, enquanto nação que propaga e alimenta ideais fascistas historicamente, eu como pessoa negra, não vejo a menor diferença entre os conflitos em Charlotssville e a chacina do Cabula na Bahia. Ou ainda entre os supremacistas brancos que mostram a cara e agridem pessoas negras na rua e supremacistas brancos que agridem via web pessoas negras famosas ou anônimas, inclusive chamando de linchadores virtuais quem retruca com embasamento contra o racismo passivo de pessoas brancas de notoriedade e prestígio social.

Temos ainda os supremacistas brancos que prestam apoio incondicional ao desmonte de políticas públicas, timidamente implantados pela pseudo-esquerda (que também é supremacista só que com o verniz das lutas sociais progressistas), como o bolsa família ou ações afirmativas diversas ou dos partidos que fazem no seu interior, um movimento de exclusão e apagamento de figuras políticas negras que poderiam trazer vivências e saberes que serviriam de alavanque para iniciativas realmente equiparadoras e reestruturantes.

Tenho receio aqui, todos os dias, porque esse país mata pessoas negras de diversas formas e em diversos lugares, como quem toma um suco detox no trajeto até o trabalho.

Pessoas brancas, por aqui, não são diferentes dos supremacistas de Charlotsville.

São apenas sonsas.

O racismo brasileiro é sonso e indulgente. Covarde e dissimulado

E isso o torna ainda mais perigoso.

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*Joice Berth é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista.

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