Racismo não

“Mês da Consciência Negra”: descaso e hipocrisia

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Pintura retrata Zumbi dos Palmares (reprodução)

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Chegamos a novembro, período em que o Brasil é contagiado por um elã comprometido em discutir a questão do negro. Bem-vindo, caro leitor, ao celebrado “Mês da Consciência Negra”.

De Roraima ao Rio Grande do Sul são organizadas palestras, seminários, shows, filmes, feiras e diferentes atividades culturais que objetivam enaltecer a contribuição dos afrodescendentes para a formação de nosso país. Seria admirável o comprometimento dos nossos conterrâneos não fosse o impulso fruto da mais tacanha hipocrisia. E por que hipocrisia? Porque dedica-se um mês à discussão sobre o racismo no Brasil e relegam-se os demais 335 dias do ano aos porões do esquecimento, em que se descuida completa e deliberadamente desse grave problema social.

Há, leitor, uma página sombria que compõe a história desse país. O regime escravista que vigorou por essas paragens por quase 400 anos forjou uma chaga definitiva no DNA nacional e gangrenou as possibilidades de acesso à cidadania plena aos egressos do cativeiro.

Calcula-se que o infame comércio de escravos tenha consumido entre 10 e 15 milhões de seres humanos, que foram arrancados da África para serem escravizados nas Américas. Desse total, aproximadamente 40% desembarcaram no Brasil, que, ao lado de Roma, ostenta o título de maior sociedade escravista da história da humanidade.

Distribuídos de Norte a Sul do nosso país, os escravizados foram utilizados em diferentes serviços: da degradante rotina nas lavouras às exaustivas tarefas domésticas, era sobre ombros negros que insidia o peso da labuta diária.

Mas onde houve escravidão, houve resistência – e de diversas formas. Mesmo sob a ameaça constante do chicote ou vigiados pelos olhos “atentos” dos feitores, os escravizados incendiavam plantações, agrediam e matavam senhores, enganavam capitães-do-mato, além de promoverem constantes rebeliões.

É um equívoco acreditar que o regime escravista se assentava apenas na violência. Pelo contrário, uma complexa teia de negociação e conflito pautou as relações entre senhores e escravizados. Quando a negociação falhava ou era desrespeitada por uma das partes, abriam-se os caminhos da ruptura.

Durante anos, a formação de comunidades de fugitivos (mocambos e quilombos) caracterizou, por parte dos escravizados, a ruptura mais recorrente e decisiva. Os cativos fugiam por diversos motivos: pelos castigos físicos, pela separação de familiares ou pela busca da sonhada liberdade.

Havia centenas de quilombos espalhados pelo Brasil, habitados por africanos escravizados, indígenas, brancos pobres e uma gama de desertores que para lá debandavam esperançosos de uma vida menos penosa. A comunidade mais duradoura foi Palmares (1597-1694). Entranhada no que correspondem às atuais regiões de Pernambuco e Alagoas, representou um terrível pesadelo para senhores e autoridades coloniais durante quase um século.

O personagem mais conhecido e polêmico de Palmares é Zumbi, cuja história é muito pouco conhecida. Sabe-se que descendia dos guerreiros imbangalas ou jagas, de Angola, e teria nascido no começo de 1655 nos mocambos palmarinos. Com a morte de seu tio, Ganga-Zumba, assumiu a liderança do quilombo em 1681 e governou até sua morte, em 20 de novembro de 1695, quando sucumbiu aos ataques comandados pelos bandeirantes paulistas.

Morre o rebelde e nasce o mito. Zumbi passou a inspirar uma série de movimentos sociais e artísticos ao longo da História do Brasil. Foi resgatado pelos abolicionistas na segunda metade do século XIX, tornou-se símbolo da luta dos negros contra a dominação escravista, embora nada indique que entre os objetivos de Palmares estivesse abolir a escravidão. Aqui cabe um parêntese, caro leitor: embora muito se infira sobre a existência ou não de escravidão em Palmares, vale ressaltar que a escravidão era parte do paradigma ideológico da época e entendida como necessária. Ainda que houvesse formas de escravidão em Palmares, esse não era o imperativo e o quilombo sempre representou uma esperança de liberdade aos cativos e uma ameaça à ordem escravista.

Durante o século XX, Zumbi foi tema de filmes, peças de teatro, enredo de escola de samba, movimento guerrilheiro e deu nome a instituições públicas e privadas. Em 1978, substituindo o 13 de maio (Abolição da Escravatura), o Movimento Negro Unificado (MNU) elegeu o simbólico 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, homenageando umas das figuras mais destacadas da história do negro no Brasil.

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Trinta e oito anos após a instauração do 20 de novembro, Fernando Holiday, suprassumo do neoconservadorismo brasileiro, resolveu reescrever a história e propor o cancelamento do feriado. Além disso, o “menino maluquinho” (com o devido respeito ao verdadeiro personagem), bastante conhecido por suas despropositadas ideias, compara Zumbi dos Palmares a Hitler e diz que o objetivo da comparação é “chocar”. Quanta bobagem, Holiday!

A preguiça e o amadorismo fizeram o pseudointelectual abrir mão de recursos mais inteligentes para “chocar” quem quer que seja. Qualquer estudante mediano de Ensino Médio sabe os riscos de comparações históricas, sobretudo considerando que Zumbi e Hitler são personagens extramente distintos no tempo, no espaço e em seus objetivos. A fala é mais uma pérola a engrossar os anais das bizarrices proferidas pelo ventríloquo. Tenha paciência, leitor, e sem maior espanto ainda presenciaremos o entusiasta a coletar assinaturas para a abertura de uma sucursal da Ku Klux Klan em território tupiniquim.

Mas aqui também cabe congratular o Movimento Negro. Devido a sua desorganização, choramingos e falta de propostas concretas, Holiday foi eleito vereador por São Paulo: será mais um a engrossar as fileiras dos contumazes representantes dos descendentes da casa-grande.

A despeito do que já foi escrito, a história de Palmares e dos demais quilombos brasileiros ainda tem muito a nos dizer. Rememorá-la neste mês da Consciência Negra é salutar, sobretudo em um país corroído pelo preconceito.

Talvez caiba se perguntar: Qual sociedade queremos? Uma mais justa e fraterna, onde todos vivam integralmente sua cidadania, ou esta já viciada a estigmatizar pessoas de acordo com a cor da pele? Enquanto não resolvermos essa questão, estaremos condenados a girar em falso, fadados a repetir os choramingos e/ou discursos de ódio corriqueiros. Esconder-se atrás do véu da democracia racial ou transferir a responsabilidade para o Estado é, no mínimo, desinteresse e covardia.

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É necessário discutir a questão do negro com seriedade e comprometimento diariamente, só assim será possível destruir os enferrujados grilhões que aprisionam o Brasil a repetir odiosas práticas racistas.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político

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