Redação Pragmatismo
Saúde 23/Abr/2014 às 09:49 COMENTÁRIOS
Saúde

Casos de grávidas que deram à luz na calçada de hospitais serão apurados

Publicado em 23 Abr, 2014 às 09h49

Duas jovens protagonizaram uma vergonha nacional: o descaso, crueldade e desrespeito aos direitos humanos com que muitas grávidas brasileiras, principalmente de baixa renda e negras, ainda são tratadas na hora do parto

Conceição Lemes, Viomundo

Deise Santana dos Santos, 19 anos, em Santo Amaro da Purificação (BA). Leilane da Silva, 22, na cidade do Rio de Janeiro.

Na semana passada, com intervalo de apenas quatro dias, as duas jovens protagonizaram uma vergonha nacional: o descaso, crueldade, negligência e desrespeito aos direitos humanos com que muitas grávidas brasileiras, principalmente de baixa renda e negras, ainda são tratadas na hora do parto.

Elas deram à luz na calçada dos serviços que lhes negaram atendimento. Deise, no portão do Hospital Maternidade de Santo Amaro, instituição privada conveniada ao SUS, que se manteve trancado, apesar dos seus gritos de dor e da revolta de transeuntes e moradores próximos ao local. Leilane, na porta do Hospital Municipal Barata Ribeiro, na Mangueira.

Leia também: Na hora de fazer, não gritou!

“Já pedi apuração urgente dos dois casos”, diz, indignado, o ministro da Saúde, Arthur Chioro.” Vamos identificar e responsabilizar possível negligência no atendimento ou omissão de socorro por serviços e profissionais de saúde.”

MATERNIDADE DE SANTO AMARO IGNORA GRITOS DE DOR DE DEISE E APELOS DE POPULARES

O drama de Deise foi na quarta-feira passada, 16 de abril. O vídeo abaixo — 2min20s — é a versão editada de um filme de 11min21s, que começou a circular na internet no dia seguinte. Uma porrada!

Na madrugada da sexta-feira, a médica, escritora e feminista Fátima Oliveira retuitou mensagem de Flávia do Coroado sobre o artigo da jornalista Tania Pacheco, do blog Combate ao Racismo Ambiental, denunciando o caso: Uma história revoltante, com um final que esperamos seja de fato feliz.

“No vídeo, durante cerca de 11 minutos, é possível ver uma mulher negra deitada numa calçada, as pernas abertas, em visível trabalho de parto. Um ou dois metros acima de sua cabeça está um portão de ferro trabalhado”, revelou Tania Pacheco, em primeira mão. “ É a entrada do hospital de Santo Amaro da Purificação, Bahia, fechado aos gritos de dor da quase menina de sorriso doce que agora vemos acima, horas mais tarde. Aos pedaços, fui descobrindo que o nome dela seria Deise, jovem quilombola de Kaonge”.

“O vídeo inteiro era brabo demais”, diz Tania. “Preferi postar a versão editada, para não expor além da medida essa quase menina.”

Enquanto Deise paria, várias pessoas tentavam arrombar a porta fechada da maternidade. Sob os olhares atônitos e revoltados de moradores e mulheres simples que passavam, nasceu Isabele.

“Nos primeiros minutos, todos ficaram paralisados, tentando, solidariamente, consolar Deise com palavras”, conta-nos Tania. “Felizmente, quando a cabeça da criança já havia despontado, e ela, aparentemente, nem tinha mais forças para gritar, mulheres anônimas — me recordo mais de uma de blusa vermelha — se abaixaram e ajudaram a menina a acabar de sair.”

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Deise (no topo), em Santo Amaro da Purificação (BA), e Leilane, no RJ, salvas com a ajuda de moradores e soldados, respectivamente

“Não havia como cortar o cordão umbilical”, prossegue a jornalista. “Então envolveram a menina num pano e a puseram sobre o peito da mãe, até a chegada do Samu, que cortou o cordão e levou parturiente e bebê para o Hospital Otávio Pereira, para que recebessem o atendimento adequado.”

Em entrevista ao jornal carioca Extra, a mulher, que fez o vídeo e prefere o anonimato, dá mais detalhes:

Eu estava saindo para trabalhar, às 6h, quando ouvi ela gritar muito alto. Fui até ela, a ajudei a ter o bebê e filmei aquela situação absurda. Aquela menina estava em sofrimento desde as 3h. Ninguém desceu para vê-la. Se não tinha médico ou vaga, que fizessem a regulação, a conduzissem a outro hospital numa ambulância.

Um médico foi chamado e quis atender a menina dentro da maternidade. Mas nem assim eles permitiram a entrada da moça na unidade. Ela foi com a ambulância tentar atendimento em outro hospital. Não a conheço, mas temos uma amiga em comum. Soube que ela está bem e o bebê, uma menina, se chama Isabele.

A autora do vídeo contou também ao Extra que, no domingo retrasado, já havia assistido ao sofrimento de outra jovem, que também teve o atendimento negado na Maternidade de Santo Amaro:

A moça chegou passando mal, e o marido entrou em desespero com a negativa de atendimento. Começou a fazer um escândalo na porta. Chamaram a polícia para conter o homem. Mais de duas horas depois, colocaram a moça para dentro da maternidade. Assisti também outra mulher sendo dispensada. Ela e o marido foram embora a pé, procurar outro hospital. Vejo isso acontecer constantemente. É uma tortura ficar aqui, de frente, assistindo. Isso tem que mudar.

SOLDADOS BUSCARAM SOCORRO NO BARATA RIBEIRO PARA LEILANE, NINGUÉM AJUDOU

Tal como aconteceu com Deise, o parto de Leilane na porta do hospital também foi filmado por um cinegrafista amador.

Segundo reportagem do G1, Leilane saiu de sua casa em trabalho de parto. Não deu tempo de chegar à maternidade. “Ela não aguentou nem pegar ônibus, táxi. Peguei ela no colo, a bolsa estourou e a neném saiu. Eu deitei ela no chão, policial veio dar assistência”, narrou o pai, Carlos da Silva.

Sem conseguir atendimento, ela contou com ajuda de policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Mangueira para fazer o parto, sobre uma calçada.

Os soldados Lucas Costa e Marcondes de Souza, que ajudaram no parto, buscaram socorro no hospital municipal, mas nenhum profissional apareceu para ajudar. Um dos PMs tirou a camisa para cobrir o bebê, que inicialmente se chamaria Kémylle. Depois, com o que aconteceu, ganhou um segundo nome: Vitória.

“Kémylle. Kémylle Vitória. Porque de tudo que passou e tá bem de saúde graças Deus”, disse ao G1 a mãe Leilane, que tem Nascimento como segundo sobrenome. “[Estou] Feliz que está tudo bem.”

“RESPONSABILIZAR POSSÍVEIS NEGLIGÊNCIA NO ATENDIMENTO OU OMISSÃO DE SOCORRO”

Em nota ao Viomundo, o Ministério da Saúde, via assessoria de imprensa, diz:

O Ministério da Saúde repudia, veementemente, os episódios de duas mulheres — uma no município do Rio de Janeiro e a outra na cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia –, que deram à luz sem as condições mínimas para a realização de procedimentos relacionados ao parto, conforme retratou a imprensa.

O Ministério da Saúde acionou, segunda-feira (21), equipes locais do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) para apurar as ocorrências em conjunto com os gestores locais de saúde a fim de identificar e responsabilizar possíveis casos de negligência no atendimento ou omissão de socorro por serviços e profissionais de saúde.

O Ministério da Saúde informa que, somente em 2013, financiou a realização de 1,9 milhão de partos na rede pública. Para os partos no Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde preconiza condições adequadas de infraestrutura, atendimento humanizado e respeito à saúde e dignidade das mulheres e bebês.

Felizmente, Deise e Leilane e as filhotas Isabele e Kémylle Vitória passam bem.

Talvez as duas mamães desconheçam, mas correram risco de engrossar a trágica estatística da qual há 12 anos faz parte Alyne Pimentel. Negra, 28 anos, moradora de Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, era casada e mãe de uma menina de 5 anos. Ela morreu devido à falta de acesso a um pré-natal e a assistência obstétrica de qualidade.

As condições em que Deise e Leilane pariram são apenas a ponta do iceberg, responsável por uma das tragédias brasileiras na área da saúde: a mortalidade materna, problema pública perfeitamente prevenível.

Mas, como preveni-la, se, na caradura, com a certeza da impunidade, hospitais abandonam grávidas nas ruas para parir, como se fossem bichos?

Bendita tecnologia. Graças ao celular, está tudo documentado. E à internet, disseminado.

Está aí uma boa oportunidade para o Ministério da Saúde começar a virar para valer esse jogo.

Primeiro, punindo os hospitais denunciados.

Segundo, abrindo um debate para valer com os movimentos e entidades de saúde da mulher.

Quem sabe faz a hora, não espera as desgraças acontecerem.

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