Quem tem medo de mulher pelada?
Azul é a cor mais quente: Rico em trama e criações estéticas, filme de Abdellatif Kechiche é atacado por suposto estímulo ao voyerismo. Alegação é tola
José Geraldo Couto, blog do IMS
Assim como O último tango em Paris ficou famoso – e estigmatizado – por causa da “cena da manteiga”, Azul é a cor mais quente está ganhando fama e estigma por causa de uma longa cena de sexo entre as duas protagonistas, Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux). Falaremos dessa passagem mais adiante. Por enquanto, cabe dizer que o filme de Abdellatif Kechiche é muito maior do que os tão falados minutos de sexo sáfico, mas não pode ser compreendido plenamente sem eles.
Reduzido ao entrecho mais básico, Azul é a cor mais quente conta uma história de amor quase trivial, do tipo “boy meets girl etc.”, só que mudada para “girl meets girl etc.”, o que faz toda a diferença. Mas não é só essa mudança de gênero, ou de orientação sexual, que torna o filme mais rico e interessante que um drama amoroso convencional. É, principalmente, o modo como ele observa os personagens e suas transformações – em particular Adèle, que começa a narrativa como uma menina e termina como uma mulher.
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Romance de formação
Esse processo de transformação se dá em paralelo – ou amalgamado – com a busca de identidade da protagonista. Identidade sexual, claro (pois ela encontra o primeiro grande amor numa mulher alguns anos mais velha, e muito mais vivida, depois de um experimento insatisfatório com um rapaz), mas também social, intelectual, político. Nesse sentido, é mais um “romance de formação”, ou uma “educação sentimental”, do que meramente uma história de amor.
O título original francês (La vie d’Adèle) é uma referência evidente ao livro que a protagonista lê na escola no início do filme (La vie de Marianne, de Pierre de Marivaux). E não deixa de ser interessante o paralelo subterrâneo que se estabelece entre a ascendência intelectual de Emma sobre Adèle e a ascendência intelectual desta sobre seu namoradinho de adolescência.
O bonito, no modo como Kechiche perscruta o desenvolvimento de Adèle, é deixar que ela mantenha suas zonas de sombra, sua opacidade irredutível. Apesar de ela estar em cena durante as três horas de filme, saímos da sessão não apenas com a impressão de não conhecê-la plenamente, mas também com a sensação de que ela própria não se conhece. Parece estar o tempo todo procurando sua turma, sem chegar a encontrá-la de verdade – e vai se construindo nesse processo de busca. Nos momentos em que Adèle se sente plena (como no parque, no primeiro encontro com Emma), uma luz estourada inunda tudo, ofuscando os contornos da personagem.
Igualmente notável é o frescor com que entra na tela o entorno da protagonista, quase à maneira de um documentário: a sala de aula, as boates GLS, a passeata política, a parada gay, os jantares em família, a escola maternal, a festa de artistas, tudo flui, tudo respira com uma naturalidade impressionante.
Sem cerimônia
Voltamos então às comentadas cenas de sexo entre Adèle e Emma. Militantes feministas e ativistas lésbicas protestaram, acusando o diretor de explorar os corpos das atrizes, oferecendo-os ao voyeurismo (supostamente masculino). Confesso que não entendo. Numa encenação em que tudo é filmado de muito perto e sem cerimônia – a ponto de os corpos dos atores quase sempre serem vistos parcialmente –, o que há de errado em mostrar as duas protagonistas se amando apaixonadamente na cama?
Em outros momentos Adèle aparece: limpando a boca com a mão ao comer um lanche; dormindo de boca aberta; chorando como uma criança, com catarro escorrendo do nariz; erguendo as calças pela cintura, feito uma menina caipira. Por que não poderia aparecer fazendo sexo com a mulher que ama? Omitir isso seria o cúmulo da hipocrisia. Edulcorar a cena com contraluzes, fusões, câmera lenta e música romântica seria, além de hipócrita, de péssimo gosto.
O incômodo causado pelas cenas de sexo de Azul é a cor mais quente, em particular pela mais longa, é análogo às reações suscitadas pela trepada quase explícita entre dois homens que está no centro de Tatuagem, de Hilton Lacerda. Nos dois casos, muita gente disse: “Isso não era necessário”. Ora, o que é “necessário” num filme?
Há algo errado num mundo que considera natural ver na tela corpos perfurados, mutilados, torturados, mas julga “desnecessária” uma cena de amor homoerótico.
Truffaut costumava dizer, talvez não totalmente de brincadeira, que o papel do diretor de cinema é “mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas”. Pois bem: Kechiche mostrou logo duas, fazendo a coisa mais linda que elas poderiam fazer. Quem não quiser ver, que mude de canal, ou melhor, de sala.