Pai, o senhor não acredita em Deus?
Como falar com o filho sobre religiosidade ou a não-existência de Deus em uma sociedade como a nossa? Confira alguns bons exemplos de respostas serenas e tolerantes sobre este tema tabu
Leonardo Sakamoto, em seu blog
Um rapazinho estava sentado à mesa de um restaurante com a mãe, o pai e a irmã, menor que ele, neste final de semana, em São Paulo. Do nada, virou para o pai, disparando:
“O senhor não acredita em Deus, né?”
Eu, que observava na mesa ao lado, achei graça na pergunta. Não foi uma cobrança, mas um simples questionamento, daqueles grandes e sinceros. Não dizem que em um grão de areia cabe todo o mundo? Então, taí um cisco no olho.
Resolvi perguntar a sábias amigas, que também são mães, como é possível explicar a não-existência de Deus em uma sociedade como a nossa – independentemente do que acreditam.
Afinal de contas, por mais que não haja provas materiais, atestar a existência de Deus é fácil, está no automático. Ou seja, se você não fizer isso, alguém fará por você. E, talvez, trazendo junto uma fé cheia de medo e culpa, que contribuirá com adultos violentos e intolerantes – diferente daquilo que, certamente, uma pessoa com o mínimo de bom senso esperaria para seus filhos.
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Vejam as respostas:
1. “Olha, tem uma definição que não é minha, mas achei tão linda que acho que pode caber. Quem me disse foi o querido padre Júlio Lancelotti. Sim, eu sei. Você me pede a não existência de Deus, e não o contrário. Mas a historinha é mais ou menos assim, me diz se serve: Certa vez, no meio de uma rebelião, um menino da antiga Febem, perguntou ao padre Júlio se Deus existia. Porque para ele, afinal, Deus era um engodo. Com menos de oito anos, o menino havia sido vítima de toda a sorte de violência, só conhecia dor e sofrimento nesta vida. Onde estava Deus para este menino? Então o padre Júlio respondeu mais ou menos assim: “Esqueça aquele velhinho barbudo que vive sentado no céu. Ele não existe. O que existe, querido, é o amor que sentimos por alguém nesta vida. Você gosta de alguém, assim, muito, muito? Pode ser qualquer pessoa. Ou um cachorrinho, quem sabe. Gosta? Então você sabe o que é Deus. O resto é bobagem”. O menino respondeu que a única pessoa que ele gostava era ele, o padre Júlio…”
2. “Quando meu filho me perguntou se tinha mesmo um papai do céu que tinha criado o mundo, eu falei que a vovó acreditava que sim, por isso ela ia na igreja conversar com ele. Mas que eu não tinha tanta certeza quanto a vovó. Falei também que se a gente faz as coisas direitinho, coisas boas acontecem com a gente também. Ele tinha 5 anos e isso foi o suficiente.”
3. “Lá em casa acho q isso vai ser uma questão porque meu marido se diz ateu e é cético mesmo. Mas eu acredito nas energias, nas vibrações, na força da mente humana… Digo que deus é o ser humano, o amor, o respeito, enfim… Ainda vamos ter esta conversa mas não batizamos, nem vamos seguir nenhuma religião, claro, porque nisso temos acordo! E aí, acho que – de novo – falando de bicão porque não vivi isso ainda, o lance é conversar e dizer que cada um acredita em uma coisa mas nós não acreditamos. E, ainda, claro, dizer que ele pode acreditar se quiser, quando puder conhecer melhor e elaborar isso. Acho que o lance é, como em outras questões, passar para ele as informações para quando tiver condição tomar a própria decisão. O mesmo não vale para o time de futebol, claro.”
4. “Acho que é explicando a existência de muitos deuses para essas crianças. Se as pessoas acreditam em um deus ou num panteão de deuses (e estamos falando da maioria da população) como negar a existência de tais deuses? Eles existem, estão aí. O importante é não permitir que o Estado escolha um deus hegemônico que dite as regras. Ou um grupo ver-se no direito de aniquilar cultos ou pessoas em função de suas crenças e hábitos religiosos. As crianças compreendem e respeitam a pluralidade muito melhor que os adultos, pois são capazes de fantasiar e acreditar na fantasia do outro tanto como na sua, inventam mundos a cada instante. Pensando bem, a questão é como explicar a não existência de um único Deus para os adultos, não para as crianças. E sobre isso as religiões de matriz africana tem muito a ensinar.”
5. “A gente nunca falou sobre Deus com o nosso filho. Ele já perguntou o que é religião: a gente disse que era uma coisa que as pessoas usavam para ficar mais tranquilas quando ficavam com medo de morrer. Ele perguntou se a gente tinha uma, a gente disse que não, mas que não era problema ele ter, se um dia quisesse. Só ia ter de escolher mais velho, não agora. E que, nem eu, nem o pai dele acreditamos em nada disso. Mas cada um escolhe seu caminho.”
6. “Outro dia minha filha me falou, diante de alguma cotidiana dificuldade, ‘mãe, tem que pedir para o papai do céu’. Gelei e perguntei quem tinha falado isso para ela, eu ou o pai com certeza não diríamos – ou pelo menos não daquele jeito, como se Deus fosse algum ‘atendente’. Perguntei e ela falou algo sobre a avó ou a tia de mais idade terem lhe contado sobre o ‘papai do céu. Ela tem três anos e pensei num discurso ecumênico mas logo abandonei, achei difícil. Guardei o assunto para depois e creio que daqui um tempo vou sim explicar que não se sabe da existência de Deus, que uns acreditam mas que outros não e isso é normal. Pensei em falar da evolução, dos macacos. mas tenho até medo de uma criança achar isso tão mais lógico do que toda a ideia de Deus que passe a adotá-la sem nem ao menos conceber que é possível acreditar em Deus. Sei lá, tô mais pronta para conversa das flores e abelhas. Eu acho que se eu puder ao menos convencê-la de que é normal a discordância sobre o assunto, algo sobre tolerância, já me sentiria aliviada. Se chegar ao ponto da pressão total, e ela perguntar o que eu acho, vou dizer a verdade: que às vezes acredito e outras não, mas que ela pode ter a própria opinião.”
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Como terminou a história no restaurante? O pai parou, olhou. Então, a mãe virou para ele e disse com muita calma: “Tem pessoas que acreditam, outras que não acreditam. Mas o importante, de verdade, é que a pessoa tenha um coração bom”.
Sei que as perguntas deles não vão terminar com essa resposta, mas ela foi um bom começo. É quase uma declaração de princípios, de que a diferença é normal – coisa que falta em muitos lugares hoje em dia.
Como na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.