A exposição sobre o aborto que chocou a Argentina
Exposição tenta pôr tabu do aborto em debate na Argentina. Apesar de proibido, cerca de 500 mil mulheres praticam o aborto ilegalmente a cada ano no país. Três fotógrafas, uma alemã, uma francesa e uma argentina, querem, com uma mostra, estimular a discussão sobre o tema
“O aborto pertence à ilegalidade na vida cotidiana argentina”, diz a fotógrafa Lisa Franz. A alemã de 34 anos vive e trabalha em Buenos Aires. Ao lado da argentina Guadalupe Goméz Verdi e da francesa Léa Meurice, ela é responsável pelo projeto 11 Semanas, 23 Horas e 59 minutos, que trata do aborto ilegal na Argentina. O projeto fotográfico conta histórias pessoais de mulheres e casais, mas também de ativistas e médicos que lutam pelo aborto legal irrestrito, aconselham e ajudam as pessoas atingidas por uma gravidez indesejada.
“Para nós, era importante não retratar as mulheres como vítimas, mas trabalhar em conjunto com elas nas fotos. Queríamos mostrar muita pele, corpo, naturalidade e a liberdade, de escolher se você quer ou não ser mãe”, diz Franz. Apesar da proibição, de acordo com números do Ministério da Saúde argentino, cerca de 500 mil mulheres fazem aborto a cada ano, em uma população de 40 milhões de habitantes.
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O tema é sensível, diz Lisa Franz. Ela lembra que, apesar de a Argentina gostar de se mostrar como país modelo na América Latina na questão de igualdade de direitos, o machismo ainda é profundamente enraizado na sociedade, como em outros países da região: “O que conta não é a vida da mulher, mas sua função como mãe”, explica.
Sua barriga é nossa
Algumas semanas depois do início da exposição, mais de 20 pessoas mascaradas, com caixas de som tocando o Hino Nacional argentino ou Ave Maria, protestaram em frente ao local da mostra em Buenos Aires. O grupo era composto, em sua maioria, por homens que gritavam: “Feministas na fogueira!”. Eles também insultaram as fotógrafas Lisa Franz e Léa Meurice: “Fora com as estrangeiras que querem matar bebês argentinos!”.
Apesar de o protesto ter sido seguido por um pequeno grupo de fanáticos críticos ao aborto, a pressão de católicos e conservadores impede um debate mais abrangente na sociedade. “A escolha do argentino Jorge Bergoglio como Papa tornou a situação ainda mais difícil”, opina Lisa Franz.
A presidente argentina, Cristina Kirchner, mostra pouco interesse em participar do polêmico debate – especialmente antes das eleições, acredita Mariela Belski, da Anistia Internacional. “O governo Kirchner tem a maioria no Congresso, mas mesmo assim, o tema não está em pauta. Essa é uma questão que pode ter custos políticos, já que o debate carrega enorme diferença de opiniões”. A Anistia Internacional argentina foca em campanhas educativas. “Não é uma opinião pessoal ou de crenças. Essa é uma das mais importantes questões de saúde pública e da vida das mulheres”. Uma vez que o Estado se priva de sua responsabilidade, creem as três fotógrafas.
“A questão também é financeira. Legalizar o aborto traria enormes custos para o sistema de saúde pública”, diz o médico Germán Cardoso, que também foi fotografado para o projeto. Ele mesmo realiza abortos, ilegalmente, por convicção, e, como ele afirma, mediante pagamento baseado na renda da paciente, mas que não passa de 3.500 pesos (cerca de 450 euros).
Avanços no continente
Outros médicos cobram até dez vezes esse valor, afirma Cardoso. “A proibição não impede que as mulheres façam o aborto. Em desespero, elas pagam somas exorbitantes, quem não pode pagar recorre a leigos ou usa as próprias mãos – muitas vezes com consequências fatais”.
Segundo a Anistia Internacional, acontecem complicações em entre 60 e 80 mil abortos ilegais realizados por amadores, sendo que cerca de cem deles terminam com a morte da mulher.
“Tirem seus rosários de nossos ovários”, pedem as defensoras do aborto em outros países da América Latina. No Chile, na Nicarágua e em El Salvador, o aborto é estritamente proibido e é punível. Em outros países da região, no entanto, a situação legal melhorou. No Uruguai, em Cuba e no México, o aborto passou a ser permitido até a décima segunda semana de gestação. No Brasil, na Colômbia e, desde setembro de 2012 também na Argentina, o aborto é permitido em caso de estupro ou se a gravidez traz risco de vida ou de saúde para a mulher.
Ironicamente, o conservador Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires, considerou a reforma inconstitucional e tentou vetá-la – sem sucesso. O Supremo Tribunal Federal a aprovou. No entanto, o governo municipal tentou, repetidamente, colocar obstáculos em sua implementação até hoje, criticam defensores dos direitos civis e os partidos de esquerda.
“Não somos políticas, somo artistas e queremos com nossas fotos quebrar o silêncio sobre esse tabu, que afeta milhões de mulheres em todo o mundo”, diz Franz. A iniciativa deu resultado, já que a exposição teve uma enorme repercussão na mídia. O projeto faz parte da campanha Meu Corpo, Meu Direito, da Anistia Internacional e está passando por diversas províncias argentinas.
A alemã espera poder levar o projeto à Europa, onde o debate sobre o aborto voltou a gerar controvérsia: o conservador governo espanhol quer reforçar suas leis contra a interrupção da gravidez. Já na Itália, o número de médicos que se recusam a praticar o aborto cresceu.