Dom Eugênio Salles era garoto de recados da ditadura militar
Documentos inéditos revelam que D. Eugênio Salles colaborou com a ditadura militar no Brasil. O líder católico atuou como agente duplo e recusou apoio a perseguidos
Em 1976, sob a égide do Ato Institucional nº 5 e cercada por denúncias de torturas, prisões, desaparecimentos e mortes de presos políticos, como a do jornalista Vladimir Herzog, a ditadura começava a ruir em meio à transição “lenta, gradual e segura” anunciada pelo general Ernesto Geisel. A Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cobrava do governo informações e esclarecimentos sobre os abusos e condenava o caráter arbitrário do regime militar.
Acuados, os generais buscavam minar o ímpeto das lideranças católicas dentro da própria CNBB. Contaram, para isso, com uma das figuras mais influentes do clero: o cardeal e então arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Salles. É o que revelam documentos oficiais obtidos pela revista CartaCapital junto ao Arquivo Nacional em Brasília. Em relatório de 14 de março de 1976, o I Exército do Rio de Janeiro relata ao Serviço Nacional de Informações (SNI) como o cardeal conseguiu conter os esforços da própria CNBB de lançar uma campanha contra a repressão. Ao se referir ao “clero católico”, o documento dizia: “A CNBB pretendia fazer declarações sobre as atuais prisões, envolvendo elementos do PCB, no RJ/RJ. Dom Eugênio Salles conseguiu esvaziar o movimento da CNBB. Irah a Roma ET, no seu retorno ao país, farah declarações favoráveis”.
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A evidência fica clara em outro documento do SNI, também parte do acervo do Arquivo Nacional. A carta da CNBB, endereçada ao general Ernesto Geisel em 24 de setembro de 1975, pedia esclarecimentos sobre o paradeiro de presos políticos. Preocupada em obter esclarecimentos “alviçareiros ou trágicos, mas definitivos” sobre casos de militantes desaparecidos, a entidade dizia ao então ditador: “Permanece, no entanto, um determinado número de desaparecimentos para os quais ainda não se obteve informações satisfatórias. (…) Até esta data, no entanto, os esclarecimentos não foram satisfatórios. Isto é motivo de desespero para as famílias dos desaparecidos e de angústia para nós pastores”. O então presidente da CNBB, Aloísio Lorscheider, termina a carta com uma súplica: “Gostaríamos de receber melhores esclarecimentos, bem como qualquer retificação, sobre imprecisão dos dados ou fatos aí contidos”.
Diante da pressão, os militares usavam dom Eugênio – arcebispo primaz do Brasil desde 1968 – como uma espécie de garoto de recados, de acordo com o documento do I Exército do Rio de Janeiro ao SNI, de 1976. À época da prisão de jornalistas ligados ao PCB, como Oscar Maurício de Lima Azêdo e Luiz Paulo Machado, foram coletados depoimentos de outros profissionais de imprensa, como Fichel Davit Chargel e Ancelmo Gois, por meio dos quais seriam reveladas operações do PCB no Rio. Com tais informações nas mãos, os militares pressionaram o fotógrafo Luiz Paulo Machado para que redigisse uma carta de repúdio ao comunismo, a fim de demonstrar arrependimento pela militância. A existência da carta de próprio punho, ressalta o documento oficial, era para ser mantida sob “alta compartimentação” (sigilo).
Apesar da carta escrita na madrugada de 13 para 14 de março, os militares queriam mais. Pediram, como relata o documento da Operação Grande-Rio – que visava “buscar intimidar ou desencorajar livre manifestação subversiva VG especialmente por meio de prisões de subversivos selecionadas por suas atuações destacadas” –, que dom Eugênio conversasse com a mulher do fotógrafo, Elaine Cintra Machado, para sugerir procurar o comandante do I Exército e obter informações sobre o detido. Era de extrema importância, no entanto, que o arcebispo deixasse transparecer o mínimo sobre a relação próxima que tinha com os militares. “Dom Eugênio Salles, por solicitação do CMT do I EX, fazendo transparecer ser iniciativa sua, aconselhou a Elaine que procurasse o CMT do I EX, dando a crer, também que soh o Exército poderia cooperar com ela.”
O objetivo seria pressioná-la, a fim de conseguir “o apoio ET a cooperação de Elaine”, como sugere o relatório sobre os procedimentos a serem tomados com a militante denunciada pelo marido como “responsável pelo movimento financeiro do PCB, no RJ”. A intenção era “desencadear de imediato uma ação psicológica sobre a esposa de Luiz Paulo Machado, Elaine Cintra Machado, com base na “carta-repúdio”.
Fotógrafo que trabalhou na revista Placar, pela qual fez a clássica foto de Pelé com uma mancha de suor em formato de coração, depois da partida contra o México, em 1970, no Maracanã, e no jornal O Globo, Luiz Paulo Machado vinha sendo monitorado pelo regime, assim como dezenas de jornalistas ligados ao PCB. No fim da década de 1960 e início dos anos 1970, estudou marxismo e leninismo em Moscou, na escola de formação da Liga Leninista da Juventude, o Komsomol, onde fez amigos de militância a quem depois ofereceu refúgio na casa de seu pai, o comandante Paulo Santana Machado, no Rio.
Machado foi solto mais tarde por falta de provas, por intervenção do então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) Prudente de Moraes Neto. Machado explicou que prefere não falar sobre esse período de sua vida.
Discurso
Líder ecumênico metodista e coordenador do Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura, Anivaldo Padilha reconhece que a figura de dom Eugênio é controversa: além de ter atuado a mando dos militares, chegou a negar ajuda a militantes, inclusive os católicos. “Dos pronunciamentos dele, não me lembro de nenhum explicitamente apoiando a ditadura, mas lembro de muitos outros criticando setores de oposição, especialmente a esquerda.”
Da mesma visão compartilha dom Angélico, bispo auxiliar do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo cuja trajetória foi marcada pela proteção aos militantes e que, inclusive, mais de uma vez esteve com o então ministro-chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, para lhe entregar listas com nomes de desaparecidos. “Do que conheço a respeito da atuação do cardeal dom Eugênio, a não ser em casos isolados, ele realmente não se confrontou com a ditadura”, avalia.
Não são poucos os casos nos quais dom Eugênio foi chamado a ajudar e a fazer frente ao regime militar e não deu ouvidos. Um dos mais famosos é o da estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Ao procurar dom Eugênio, bateu com a cara na porta. Sua filha, a colunista social Hildegard Angel, em mais de uma ocasião disse que o cardeal “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos ‘subversivos’ que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe”.
A omissão, o silêncio e a compra das versões dadas pelos militares para acobertar torturas e mortes nas prisões por dom Eugênio acabavam sendo respaldados pela mídia, com quem o cardeal mantinha ótimas relações – vale lembrar que ele escrevia artigos para O Globo e Jornal do Brasil com certa regularidade.
Em audiência da CNV no Rio, ex-presos políticos destacaram a postura ambígua de certos setores da Igreja durante o regime militar. Atuante no movimento social da Igreja Católica, a pernambucana Maria Aída Bezerra procurou o então arcebispo do Rio para ajudar a amiga Letícia Cotrim, que estava detida. “A conversa não foi boa. Não deu certo. Ele não acreditava que a comunidade cristã dele estava sendo perseguida e não quis intervir. Ele nos considerava subversivos e era contra cristãos de esquerda”, declarou em seu depoimento na sessão do dia 17 de setembro.
A proximidade com a ditadura passava também por uma forte amizade com Antonio Carlos Magalhães, governador da Bahia e pessoa de muita influência durante o regime. Uma amizade que chegava ao ponto de os dois serem vistos, mais de uma vez, tomando banho de mar juntos.
O cardeal, naturalmente, tem seus defensores, que negam as acusações e dizem que dom Eugênio prestou ajuda a militantes refugiados de países do Cone Sul. A ajuda tinha como base uma parceria com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), que fornecia a verba a ser administrada pela Cáritas. Além do aluguel pago aos militantes, a Igreja Metodista oferecia no Colégio Bennett, na zona sul do Rio, um espaço de aulas para os filhos dos refugiados, enquanto esperavam pelo asilo político. Mas o asilo a refugiados, explica o bispo emérito da Igreja Presbiteriana, Paulo Ayres, deu-se mais por uma questão política do que ideológica. “Ele foi procurado pelo Alto-Comissariado da ONU para que o Brasil servisse como uma passagem para eles. Esse apoio aos militantes foi institucional”, lembra Ayres. “Não há dúvida de que dom Eugênio esteve muito mais próximo do governo militar do que dos católicos favoráveis à resistência.”
Assessor de imprensa de dom Eugênio por mais de 40 anos, Adionel Carlos da Cunha discorda. “Desconheço completamente qualquer ação do dom Eugênio nesse sentido (de colaboração com os militares). Pelo contrário, a ação dele foi de conseguir salvar mais de 5 mil militantes”, conta.
Trajetória
Um dos nomes cogitados para suceder ao papa João Paulo I, em 1978, o arcebispo nascido em Acari, no Rio Grande do Norte, em 8 de novembro de 1920, foi próximo do Vaticano como nenhum outro cardeal brasileiro. Ao longo de seus quase 60 anos de episcopado e mais de 40 de cardinalato, nomeou 22 bispos e 215 padres. Sempre foi um ferrenho opositor à Teologia da Libertação.
Para dom Angélico, a posição de dom Eugênio era clara: “Não era uma postura dúbia. Basta analisar historicamente”, disse, ao lembrar que a ditadura foi construída pelas “classes conservadoras, os grandes interesses econômicos e o apoio da CIA”. “Vivíamos em meio à polarização indevida entre o mundo livre e o mundo comunista. E muitos na Igreja temiam essa onda comunista.”
Marsílea Gombata, CartaCapital