Luis Soares
Colunista
Política 04/Nov/2010 às 10:45 COMENTÁRIOS
Política

Na falta de programa, a direita apela para mentiras

Luis Soares Luis Soares
Publicado em 04 Nov, 2010 às 10h45
As campanhas eleitorais sujas são típicas da direita golpista que, sem poder confessar seus programas antidemocráticos, antipopulares e antinacionais, esconde-se atrás de alegações moralistas e ameaçadoras.
“Varre, varre vassourinha!
Varre, varre a bandalheira!
Que o povo já está cansado
De sofrer dessa maneira”
O jingle de campanha de Jânio Quadros, na eleição presidencial de 1960, até hoje, meio século depois, é lembrado como uma espécie de hino das campanhas eleitorais moralistas da direita e dos conservadores. A campanha eleitoral deste ano, encerrada no domingo com a eleição de Dilma Rousseff, foi apenas mais uma na longa tradição conservadora brasileira de difusão de tergiversações desse gênero. Ela chamou a atenção pela virulência caluniosa e pela inovação ao centrar em questões religiosas e morais (como o aborto e o homossexualismo), com abundante uso de recursos eletrônicos (como a internet e o telemarketing) e, por isso, foi classificada como a pior campanha já vista.

Pode ser. Mas houve outras, no passado, tão violentas e caluniosas quanto a deste ano, e que também usaram e abusaram dos recursos disponíveis em cada época.

Cartas falsas

A campanha eleitoral de 1921, por exemplo, foi considerada pelo historiador Hélio Silva como a mais violenta, até então, do período republicano. Estava em disputa a sucessão do presidente Epitácio Pessoa, e as oligarquias estaduais dividiram-se entre o mineiro Artur Bernardes, apoiado por São Paulo e Minas Gerais, e Nilo Peçanha, apoiado por estados menores como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.

Em outubro daquele ano o jornal Correio da Manhã publicou duas cartas entregues à redação pelo senador Irineu Machado, representante do Distrito Federal, e que continham ofensas graves aos militares.

Embora Bernardes tenha desmentido a autoria, a publicação daquelas cartas – que se soube, logo depois, terem sido falsificadas – foi o suficiente para desencadear uma forte onda de protestos entre jovens oficiais, com grande inquietação e insubordinação nos quarteis. Esse clima continuou mesmo depois da posse de Bernardes, com intensa repercussão nos setores urbanos descontentes com os corrompidos costumes políticos da República Velha.
Aquele descontentamento desdobrou-se no levante tenentista de 5 de julho de 1922 e na onda anti-oligárquica que deu a marca revolucionária à década de 1920 e só terminou com o movimento liberal de 1930.

Mesmo assim, aquela foi uma campanha acanhada e amadorística perto do que viria depois. Ela já prenunciava o aprofundamento da disputa entre dois projetos de nação e dois modelos de desenvolvimento, que se acentuaria nas décadas seguintes – de um lado, o programa dependente e subordinado da oligarquia agroexportadora, aliada ao capital financeiro e ao imperialismo. Do outro lado, o projeto de desenvolvimento industrial autônomo e democrático, que já se apresentava, em germe, naquele confronto.

Este confronto atravessou todo o período republicano e continua mesmo hoje opondo aqueles que defendem um projeto nacional de desenvolvimento avançado e autônomo para o país aos pregoeiros do neoliberalismo, herdeiros da oligarquia derrotada na década de 1930.
Em 1962, um festival de corrupção e anticomunismo

Nessa disputa o uso de todo tipo de artimanhas não é novidade para a direita conservadora e neoliberal. Em 1960, ela foi temporariamente vitoriosa com a eleição de Jânio Quadros, um presidente efêmero e personalista que exerceu seu mandato por apenas sete meses, renunciando em 25 de agosto de 1961. E que se apresentara, na campanha eleitoral, como “um homem do povo”, indignado com a corrupção e com os políticos. Ao renunciar, Jânio iniciou a crise política que atravessou todo o mandato de seu sucessor, o vice João Goulart, deposto pelos militares em 1º de abril de 1964.

Aquela foi uma época de luta aberta entre os partidários dos dois modelos de desenvolvimento, e de permanente conspiração dos conservadores e da direita que, num primeiro momento, apostaram em uma saída eleitoral para seus propósitos.

Nesse sentido, transformaram a eleição de 1962 – o último pleito democrático antes da ditadura militar de 1964 – num verdadeiro festival de corrupção e influência do poder econômico, conduzidos pelas duas principais organizações da direita, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) e seu braço político, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que difundiram extensa propaganda anticomunista para levar o pânico às classes médias e aos proprietários.

Houve de tudo – desde o apelo aos sentimentos religiosos do povo que, segundo a direita, estavam ameaçados pelos comunistas até a ameaça de guerra civil. “Nunca o estado [do Rio Grande do Sul] e o Brasil se viram frente a um inimigo da civilização tão próximo como está sucedendo hoje”, disse em setembro de 1962 o candidato da direita ao governo gaúcho, Ildo Meneghetti. “Hoje será pelo voto, para evitar, amanhã, o derramamento de sangue”.
 

Cuba, os soviéticos e o comunismo eram os grandes espantalhos de então. Para difundir sua doutrina conservadora, antidemocrática e antipopular, a coligação da direita teve a sua disposição recursos como nunca se vira numa campanha eleitoral brasileira.

O IBAD, que ameaçava os jornais de boicotes comerciais e usava o terror político contra publicações que não aceitavam sua linha politica. Chegou a alugar a opinião político-editorial do jornal A Noite, no Rio de Janeiro, pagando dois milhões de cruzeiros por mês. Era uma fortuna: o estudioso René Armand Dreifuss informa que, naquele ano, o salário diário médio de um trabalhador era de 500 cruzeiros. Isso significa que o aluguel daquele jornal equivalia ao pagamento diário de quatro mil trabalhadores!

O IBAD e o IPES apoiaram, na eleição daquele ano – eleição que, segundo o general Golbery do Couto e Silva, um dos articuladores do golpe militar de 1964, apresentou uma tendência “comuno-petebista” que não comportava uma saída eleitoral – cerca de 250 candidatos a deputado federal e 600 a deputado estadual, além de intervir na eleição de oito governadores e de vários senadores.

Cada candidato, diz o ex-deputado trabalhista Eloy Dutra, recebia amplo apoio para a campanha: centenas de cartazes e faixas, um milhão de cédulas, veículos com aparelho de som, além de dinheiro (CR$ 1,6 milhão para candidatos a deputado federal e CR$ 800 mi para deputado estadual). Um candidato médio (“apagado”, como se dizia), diz Dreyfuss, custava 10 milhões de cruzeiros (o salário diário de 20 mil trabalhadores) para aquele esquema conspiratório.

A mídia na campanha da direita

Havia, além disso, centenas de programas de rádio e tevê e matérias pagas em jornais, em todo o território nacional. Os grandes jornais e redes de rádio e tevê (como os Diários Associados, a Folha de S Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo) nesse esquema lucrativo para difundir campanhas de pânico cujo centro era a “ameaça vermelha”. Entre julho e setembro de 1962, 13 emissoras de tevê tiveram apoio financeiro e seus programas eram retransmitidos por 312 estações de rádio, consumindo – apenas neste item – 140 milhões de cruzeiros.

Naquela eleição, calcula-se que a direita gastou – em sua campanha de atemorização do eleitorado conservador – no mínimo cinco bilhões de cruzeiros (o salário diário de 10 milhões de trabalhadores!), através principalmente de contas em três bancos americanos: The Royal Bank of Canada, Bank of Boston e The National City Bank of New York. Estes recursos foram fornecidos por mais de 500 empresas sediadas principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entre elas, 297 multinacionais americanas e 101 de outros países.

Mesmo assim, a direita perdeu aquela eleição e o vaticínio de Golbery concretizou-se com o golpe militar de 1964 e o cancelamento, por mais de duas décadas, da realização de eleições democráticas no Brasil. Elas voltaram, para a presidência da República, em 1989. E, nela, a direita teve a mesma participação golpista e conspiratória que já havia protagonizado antes.
Miriam Cordeiro ganhou 24 mil dólares para mentir em 1989.

A eleição de 1989 ainda combinou a exploração do medo da “ameaça vermelha” com temas moralistas, principalmente no segundo turno, quando o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, da Frente Brasil Popular, disputou a presidência da República com o neoliberal Fernando Collor de Mello, candidato da direita e dos conservadores.

A direita não se acanhou. Encenou conflitos de rua para acusar as forças progressistas de violentas, como o choque que seus seguranças protagonizaram em Caxias do Sul (RS) em 30 de novembro de 1989, numa briga cuja iniciativa foi falsamente atribuída a militantes do Partido dos Trabalhadores. O jornalista Ferreira Neto, em seu programa na televisão, espalhou boatos – com apoio de Collor – de que, caso Lula vencesse a eleição, trabalhadores invadiriam casas e apartamentos de classe média, obrigando seus proprietários a dividirem sua ocupação. Usaram a imagem de criminosos usando a camiseta do PT durante o sequestro do empresário Abilio Diniz, ocorrido na ocasião. Collor, em seu programa eleitoral, acusou o PT de pretender confiscar o dinheiro mantido na poupança (hipocritamente: na presidência, este foi o primeiro ato de Collor, anunciado já no dia da posse).

Eram mentiras difundidas para explorar o medo da classe média e o anticomunismo que ainda era muito forte, particularmente naqueles anos de crise dos sistemas socialistas do leste europeu.

Mas a marca mais lembrada da campanha suja da direita em 1989 foi moralista: há notícias de que os marqueteiros de Collor pagaram 24 mil dólares para Miriam Cordeiro, uma ex-namorada do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, para declarar no programa de Collor que Lula teria tentado convencê-la a abortar quando estava grávida da filha do casal, Lurian. Era mentira, mas ela arrasou a candidatura de Lula, que – por escrúpulos pessoais – não aceitou reagir no mesmo baixo nível. Ao contrário – e confirmando a tese de que a instabilidade e a baixaria nas campanhas eleitorais são típicas da direita – Lula proibiu seus auxiliares de usarem na campanha fotos que mostravam Collor usando maconha ou de um filho ilegítimo atribuído a ele em Pernambuco. Lula simplesmente proibiu o uso desse tipo de recurso.

Luta de classes

As eleições são episódios da luta de classes nas condições contemporâneas. São momentos nos quais, dentro da normalidade institucional, o poder é posto em suspenso, devolvendo ao eleitorado a prerrogativa de escolher não só os novos governantes mas, principalmente, os programas políticos, econômicos e sociais que estarão à frente da nação.

Num país como o Brasil as eleições são momentos de embate vivo, ocasiões de luta acesa pela afirmação do desenvolvimento nacional contra oligarquias agrárias e financeiras retrógradas, aliadas do imperialismo. Nestas condições o apelo popular pelo crescimento econômico, pela consolidação da democracia e pela soberania nacional, é extremamente sensível, numa situação em que – como se viu – a defesa de teses neoliberais, como a privatização de empresas e riquezas nacionais, é fatal para candidatos conservadores.
 

Além disso, o apelo a temas que simulam uma proximidade entre o candidato e o eleitor mascaram a natureza coletiva da escolha eleitoral e dão a ela a impressão de escolha feita por um indivíduo (o eleitor) por outro (o candidato). Dilui-se assim o caráter coletivo e de confronto de classes que é reforçado quando se comparam programas para o país, a democracia e a economia.

O conservadorismo se baseia neste duplo ocultamento. Primeiro, do programa que, se fosse confessado, afastaria os votos e comprometeria as candidaturas da direita. Depois, insinuando uma relação pessoa a pessoa entre o eleitor e o candidato, escamoteia o caráter classista das disputas pelo poder.

A direita só pode fazer esse duplo ocultamento escondendo também a verdade. Daí as campanhas de calúnias, mentiras e medo que protagoniza.

José Carlos Ruy

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