Luis Gustavo Reis
Colunista
Racismo não 13/Mai/2017 às 16:50 COMENTÁRIOS
Racismo não

Qual o legado da abolição da escravatura?

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 13 Mai, 2017 às 16h50
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Anônimo. Baiana. Segunda metade do século XIX. Óleo sobre tela. 95,5×76,5cm. Museu Paulista. São Paulo.

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Todo dia 13 de maio relembramos que o Brasil patrocinou um dos regimes mais bestiais da história: o tráfico e a escravização de seres humanos.

A escravidão vigorou por essas paragens de meados de 1530 até 1888. Fomos um dos últimos países do planeta a abolir esse hediondo regime. São vários os títulos sádicos atribuídos aos brasileiros, desonrosos episódios que nos envergonham e nos apequenam definitivamente.

Foram quase 400 anos de cativeiro e um número incalculável de sonhos dizimados, famílias despedaçadas e vidas interrompidas. Brasil e Roma ostentam o título de maiores sociedades escravistas da história da humanidade. Assim como os romanos, forjamos com o sangue daqueles que trucidamos nos pelourinhos o DNA da nossa identidade nacional.

Calcula-se que o infame comércio de escravos tenha consumido entre 10 e 15 milhões de seres humanos, que foram arrancados da África para serem escravizados nas Américas. Desse total, aproximadamente 40% desembarcaram no Brasil.

Distribuídos de Norte a Sul do nosso país, os escravizados foram utilizados em diferentes serviços: da degradante rotina nas lavouras às exaustivas tarefas domésticas, era sobre ombros negros que insidia o peso da labuta diária.
A crueza dos senhores de escravos e os horrores do escravismo é conhecimento comum. Os livros didáticos de história são pródigos em construir explicações enviesadas. Apresentam, com raras exceções, escravizados sempre em situação de açoite, penúria, submissão, em suma, vitimizados em tempo integral.

A quem serve tecer um passado onde os negros eram coisificados e sem vontades próprias? Quantas crianças irão abrir os livros e se identificar com seus antepassados? Quantas autoestimas destroçadas por essas perversas narrativas que apresentam um negro sempre inferiorizado?

Que a violência foi imperativa durante a escravidão é inquestionável, porém onde houve escravidão, houve resistência. Os cativos não eram vítimas e nem heróis o tempo todo. O escravizado aparentemente acomodado de hoje, tornava-se o rebelde do dia seguinte.

É um equívoco acreditar que o regime escravista se assentava apenas na violência. Pelo contrário, uma complexa teia de negociação e conflito pautou as relações entre senhores e escravizados. Quando a negociação falhava ou era desrespeitada por uma das partes, abriam-se os caminhos da ruptura.

Mesmo sob a ameaça constante do chicote ou vigiados pelos olhos “atentos” dos feitores, os escravizados incendiavam plantações, agrediam e matavam senhores, enganavam capitães-do-mato, além de promoverem constantes rebeliões. Em 1857, – pasme! – os negros cruzaram os braços na cidade de Salvador, Bahia. Insatisfeitos com uma medida municipal, resolveram paralisar as atividades e entrar em greve em pleno regime escravista.

A despeito dos horrores, diversas negros superaram o estigma da escravidão, reinventaram suas vidas e atuaram ativamente como sujeitos históricos.

Leia aqui todos os textos de Luis Gustavo Reis

O notável catedrático, Eduardo Antonio Bonzatto, listou em seu livro (Aspectos da História da África, da Diáspora Africana e da Escravidão. Ícone, 2011.) alguns negros que encontraram nas fissuras da ordem escravista, espaços de autonomia para exercerem suas potencialidades. São eles:

Zacarias Góes de Vasconcelos (1815-1877), senador do Império; Caetano Lopes de Moura (1780-1860), cirurgião e médico particular de Napoleão Bonaparte; Visconde de Inhomerim (1812-1876), médico, advogado presidente do Banco do Brasil, ministro plenipotenciário do Brasil na França… Antônio de Castro Alves, poeta; General Francisco Glicério de Cerqueira César, fotógrafo, professor, senador do Império; D. Silvério Gomes Pimenta (1840-1820), primeiro bispo negro brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras; Barão de Cotegipe (1825-1889), um dos mais notáveis políticos do Segundo Reinado; Padre José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830) um dos grandes músicos clássicos brasileiros; Eduardo Neves (1874-1919), palhaço, poeta e cantor… João Timóteo da Costa (1879-1932), pintor; Benjamim de Oliveira (1870-1954), primeiro palhaço negro do mundo, atuou em Othelo e fez um dos primeiros filmes brasileiros, Os Guaranis, 1908; D. Manuel de Assis Mascarenhas (1805-1867), presidente das províncias do Rio Grande do Norte e de Sergipe; Francisco Correia Vasques (1839-1892), ator cômico… Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), pintor, considerado um dos melhores paisagistas e marinistas do séc, XIX; Xisto Bahia (1842-1894), ator; Joaquim Candido Soares Meirelles (1797-1868), médico; André Rebouças (1838-1898), engenheiro; Juliano Moreira, um dos mais notáveis cientistas do séc. XIX [….] e tantos outros e outras que o anonimato condenou ao ostracismo.”

Há exatos 129 anos, se decretava a Lei Áurea que extinguiu a escravidão no Brasil. A penada da princesa Isabel aboliu o escravismo, mas não seu perverso legado. Os resultados de séculos de cativeiro são amargados pelos afrodescendentes até os dias atuais.

Os grilhões não impediram que os escravizados nos transmitissem preciosos ensinamentos. O mais importante deles, talvez, foi evidenciar que como sujeitos históricos interagimos com o sistema, seja azeitando suas engrenagens ou vez por outra destilando areia em seus mecanismos. Apontaram que os sistemas são inertes e só funcionam para quem acredita neles.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político

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