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REFLEXÕES SOBRE O VASO SANITÁRIO

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Imagem: Foto LP Juca Chaves ao Vivo 1972

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Nós, que nascemos sob a ordem de cagar e mijar num vaso sanitário e apertar um botão que libera forte jato de água mineral, não podemos imaginar o caminho percorrido até hoje por esse dispositivo de aparente higienização.
As cloacas romanas, os sistemas de coleta e distribuição dos astecas, os modelos eficientes de reutilização dos chineses, cada grande sistema de tratamento da merda anterior à modernidade é exemplo de como a autonomia funciona de modo a conceber uma ação para o bem comum.
Até avançado o século XIX nas grandes cidades coloniais escravistas, a atuação dos tigres era comum. Escravizados urbanos no Rio de Janeiro que percorriam trajetos com grandes baldes na cabeça anunciando a sua passagem. As pessoas das casas assobradadas iam às janelas com seus urinóis cheios e derramavam nos baldes. Com a procissão dos chamados, os baldes sempre mais cheios extravasavam, escorrendo sobre o corpo dos coletores. Daí nasceu o termo enfezado, que conferia ao humano uma coloração de aspecto de tigres.
Os miasmas londrinos que emergiam de lugares onde depositavam os dejetos humanos foram famosos e causa da descoberta da penicilina e de outros lenitivos antes que fosse completamente erradicados como ambientes insalubres.
Esses problemas são típicos do modelo de colonização eurocêntrica, pois todos os outros povos da terra sempre souberam como tratar seus dejetos. Os nativos da Amazônia defecam nos rios para evitar o faro das onças pintadas.
Os aborígenes animistas da Austrália, nômades por origem e prática, tratam seus dejetos como fertilizantes naturais a alimentar os desertos.
Os ribeirinhos de toda terra usam os rios para alimentar os peixes que anteriormente os alimentaram.
As grandes concentrações humanas nascidas com as grandes cidades alteraram princípios intuitivos em nome das urgências.
Já com a ideia de implementar a peça em um sistema de saneamento básico, em 1775, o escocês Alexander Cumming patenteou a ideia da privada como nós a conhecemos hoje. Entretanto, foi o engenheiro mecânico Joseph Bramah que, em 1778, aperfeiçoou o projeto da bacia sanitária com uma descarga de água.

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Ainda vivi no tempo das casinhas. Uma edificação simples afastada da casa principal em que se cavava um poço em que as pessoas defecavam. Entrar num desses ambientes é um ato de admiração. Nas paredes toscas de madeira, marcas de dedos deslizantes revelavam como limpavam a bunda.
Outras tantas vezes, acidentes ocorriam, pois enquanto defecavam, acendiam seus cigarros de palha e a grande concentração de metano na fossa negra provocava explosões danosas. Ainda hoje essas fossas estão ativas, provocando grande contaminação do lençol freático.
Uma das características do solo reside em alta concentração de bactérias entre quarenta e sessenta centímetros abaixo da superfície. Mas com o aprofundamento essa quantidade que chega a um bilhão de bactérias por centímetro cúbico de terra vai escasseando. Se o depósito do resíduo ficasse nessa profundidade, a atividade bacteriana transformaria o produto em adubo. Mas a fossa negra é profunda e não opera no sentido de metamorfose da merda em adubo.
Na França, os burgueses mais abastados construíam vasos sanitários portáteis que visavam apenas o conforto do assento.
De modo geral, o sistema atual do vaso sanitário implica na deposição no vaso, num sistema de coleta que encontra quase sempre os rios.
O uso que as pessoas fazem do vaso, contudo, é particular, ou melhor, implica em duas posturas diferentes e cada uma sugere um princípio.
Ao usar o vaso, fecham a tampa e operam a descarga. Há aqui um sentido de que a tampa retém no interior do vaso coliformes fecais voláteis que identificamos pelo mau cheiro das fezes.
Essa é uma prática estranha, como se houvesse um modo de limitar a ação desses termotolerantes. Mas aqui devemos considerar que a contenção dos odores no abafamento do vaso coberto promove em seu interior ambiente potencial para a criação de colônias de bactérias aeróbicas que ainda estarão ativas quando o próximo usuário destampar o sistema.
Considerando nossa forma usual de lidar com a merda, ou seja, apenas apertando um botão e pronto, o sistema de tratamento subjetivo replica o modo heteronômico geral de nossa relação com o ambiente, com os seres e com a vida. Esse desprezo que é fruto da facilidade e da ignorância não encontra paralelo na jornada humana pelo planeta.
Se antes da modernidade colonial o ser humano considerava que tudo que vivia era teu próximo, de tal sorte que nunca se considerava só e, portanto, cada gesto, cada ato implicava no modo que atingia o outro, qualquer que fosse esse outro, humano, animal, vegetal, o domínio de sua postura refletia-se como um espelho, retornando a si como uma consequência.
Não há melhor pedagogia do que o exemplo.
Nós, atualmente, não sabemos de onde vem a água nem pra onde vai a merda, indiferentes às causas e ignorantes das consequências. Mas sabemos, sem dúvida, de onde vem e pra onde vai o cheiro.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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