Categories: Política

EIS AQUI O HOMEM

Share

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Então Pilatos saiu outra vez fora, e disse-lhes: Eis aqui vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele crime algum. Saiu, pois, Jesus fora, levando a coroa de espinhos e roupa de púrpura. E disse-lhes Pilatos: Eis aqui o homem.
(João 19:4-5)
O que é o passado?
O passado poder ser o que quisermos que ele seja, sob o manto da nostalgia. Mas existe um passado que é comum a todos que vivem sob a influência da colonização, aí esse passado é eurocêntrico e cristão.
Esse passado pode ser investigado, lido em livros, estudado por historiadores diligentes que organizam suas peças de acordo com o tempo de seus estudos requerem.
Esse passado é imutável e imune a questionamentos mais profundos. Tudo que está escrito, é passível de ser defendido como verdadeiro.
Um livro leva ao outro e assim por diante, cada um repetindo o essencial e alterando o superficial. A estrutura esta protegida pelo pecado imperdoável do anacronismo, que é o jeito de ler esse passado sem respeitar aqueles que o descreveram.
Esse passado colonial é dividido em quadripartismos. A idade antiga, a idade média, a idade moderna e a idade contemporânea. Tudo aí, evoluindo de um tempo para o próximo num sentido determinado e irrevogável.
Para empurrar esse passado na direção da dúvida necessária, quero questionar a construção da memória como sendo um artifício colonial e que mantém a colonização como ocupação da racionalidade, ativa.
O livro de Michael Moorcock, Behold the Man (1969), traz uma sinopse instigante para refletir sobre esse passado.
Karl Glogauer é um homem dos nossos tempos. Quando o destino lhe oferece a possibilidade de viajar no tempo, ele não tem dúvidas quanto ao lugar e à época que quer visitar: a Terra Santa no tempo de Jesus. Mas o que poderia ser uma viagem turística à morte do Messias e ao nascimento da maior religião do mundo revela-se uma desilusão: Maria é a libertina da aldeia, José um velho amargo e Jesus Cristo apenas um deficiente mental. Devotado ao ideal de um Jesus real e histórico, Karl acredita que tem de fazer alguma coisa. Reunindo seguidores, repetindo parábolas que consegue recordar e usando truques psicológicos para simular milagres, Karl toma o lugar do Messias. Mas fará sentido um Messias que, no final, não morra na cruz?
Michael Moorcock é um escritor do coração do império. E não há nada que o desabone, pois é crítico de certos vínculos coloniais em seus escritos.

E escreveu essa obra que pode ser analisada pela perspectiva do anacronismo, essa invenção do império para encerrar o passado no ponto da história contada. E a história contada não está aberta.
Ter a mente colonizada implica em estar fechado para qualquer outra possibilidade. E o passado é um lugar sem mistérios para a razão ocidental.
O personagem do livro de Moorcok encontra um jeito de ir ao tempo de Jesus com uma máquina do tempo de renascimento. Um ovo com a gema viajando no tempo evoca esse renascimento. E lá podemos encontrar ele com um passado que não estava na conta.
Um cristo corcunda, uma maria prostituta, um josé violento e nada de seguidores, de crucificação, de cristianismo enfim.
Mas ele precisa fazer cumprir a verdade colonial e não lhe resta outra alternativa senão transformar-se no crucificado.
Essa percepção de um passado bloqueado e que mesmo diante de sua inaceitável diferença precisa reconhecer apenas o que a razão diz, a sua verdade, revela todo o poder da racionalidade e da colonização.
Toda a obra Operação Cavalo de Troia (1987), de J.J. Benitez é a expressão literal da história cristã em forma de romance. Uma viagem ao passado para constatar a verdade da história.

A obra mescla temas bíblicos (a vida de Jesus) com ficção-científica (a viagem no tempo) e mostram “dossiês” que narram uma missão da Força Aérea dos Estados Unidos na qual um módulo chamado “O Berço” é levado ao passado com o propósito de comprovar a existência de Jesus Cristo. A missão é chamada de “Operação Cavalo de Troia” e, como é costumeiro nas operações das forças militares norte-americanas, não são revelados grandes pormenores dos métodos de física utilizados para a reversão, nada é mencionado, além de “novos conceitos da física quântica vindos da Europa”. Conceitos, obviamente, também sigilosos.
Um major, de nome não revelado, e um piloto voltam no tempo até os anos 30 da era cristã e presenciam muitos fatos narrados na Bíblia cristã. Na verdade, a Bíblia é tomada como referência, uma vez que contém as datas e eventos da época. Fornecem, também, dados da sociedade da época: costumes, leis (principalmente as leis do judaísmo), crenças (judaicas e pagãs, geografia, ambiente, etc). O major, que durante a viagem adota o nome de Jasão, é escolhido para a operação por seu ceticismo e imparcialidade, mas quando encontra Jesus, é tocado profundamente por sua mensagem e a narrativa ganha um tom delicado e humano.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Os pormenores da vida de Jesus, assim como as conversas em que Ele fala abertamente sobre sua origem divina e sobre o que é a sua missão na Terra, deixam claro que a Igreja teria passado longe da mensagem original. A diferença entre os acontecimentos presenciados pelo Major e os narrados nos textos sagrados é enorme, mas compreensível. Segundo as próprias observações do personagem, os evangelistas nem sempre presenciaram os acontecimentos que narraram anos depois e, mesmo quando presentes, sua formação cultural não permitia que compreendessem totalmente os acontecimentos.
Segundo essa obra, a mensagem de Jesus fala de um Deus-Pai, sempre bom e generoso. Um Deus que não exige templos nem rituais. Algo que precisa ser vivenciado para ser compreendido, e que não pode ser comprovado, como desejavam os militares (e a ciência).
As diferenças superficiais não recusam a estrutura colonial, muito pelo contrário, a reforçam.
Temos duas situações em que as verdades universais, verdades coloniais que se diga, entende o passado como as narrativas históricas, construídas todas praticamente no surgimento da história edificada para alinhar os estados-nação aos princípios metropolitanos, desembocam na confrontação dessas verdades.
Nos dois casos, a viagem ao passado criado e construído encontra reações similares. O major do projeto operação cavalo de troia reconhece a verdade com suaves alterações que se dariam de acordo com sua percepção.
Considerando essa primeira situação, se qualquer pessoa que vive sob as influências coloniais, portadores da razão instrumental colonial, que se sente como um soberano da vida coagulasse na Roma dos césares, iriam ver exatamente o que aprendeu sobre a Roma dos césares, ou sobre o Egito, ou sobre a África.
A verdade universal colonial está na mente do colonizado e ele percebe a realidade segundo sua percepção e nunca como as coisas seriam. Vê uma situação e constata a desigualdade natural a que está acostumado.
O segundo caso, em que o sujeito encontra uma realidade radicalmente diferente daquela que aprendeu, sua posição é ainda mais impressionante, pois ele sente que precisa corrigir o passado para que no fim as coisas aconteçam como devem acontecer.
Se transforma no cristo crucificado pelo bem do cristianismo.
O início da obra:
A máquina do tempo era uma esfera cheia de fluido leitoso, no interior da qual flutuava o viajante, encerrado num traje de borracha e respirando por uma máscara ligada à parede do aparelho por um tubo. A esfera rachara-se na aterrissagem e o fluido transbordava sobre a terra, que o absorvia. Movido
pelo instinto, Glogauer enrolou-se numa bola, enquanto o líquido escoou e ele foi ao fundo, ao encontro do plástico macio do revestimento interno da máquina. Os instrumentos, críticos, pouco convencionais, permaneciam mudos. A esfera tremeu e rebolou para o lado, com o pouco líquido remanescente a pingar do enorme rasgão.
Em algum lugar da obra:
Este homem não detém o poder material dos deuses imperadores; apenas um séquito de pescadores e gente do deserto. Chamam-lhe deus; e ele acredita. Os discípulos de Alexandre diziam: «Ei-lo invencível, e por isso um deus.» Os discípulos deste homem mal pensam sequer; ele é o seu ato de criação espontânea. Guia-os agora, este nazareno louco chamado Jesus.
E falou-lhes, dizendo: Sim, na verdade fui Karl Glogauer e agora sou Jesus, o Messias, o Cristo.
E assim foi.
Não faria nenhum sentido um messias que não tivesse morrido na cruz.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

Acompanhe Pragmatismo Político no TwitterInstagram e no Facebook