Literatura

Fontanarrossa, El negro

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Eduardo Bonzatto*,

“Para el Sabio no existe la riqueza. Para el Virtuoso no existe el poder. Y para el Poderoso no existen ni el Sabio ni el Virtuoso”.

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski foi um escritor, filósofo e jornalista do Império Russo. É considerado um dos maiores romancistas e pensadores da história, bem como um dos maiores “psicólogos” que já existiram. No entanto, é um escritor de difícil assimilação e muitos que o apreciam consideram seu hermetismo um aspecto de seu psicologismo.

Essas dificuldades existem por um motivo fundamental: é um escritor não eurocêntrico. Sua epistemologia é de outra natureza e em seu arsenal anti europeizante reside não só valores comunais, mas uma antimodernidade que confunde os mais resistentes analistas de suas obras.

O império cognitivo que herdamos com a colonização nos harmonizou com uma ética, uma moral e um conjunto de valores que uniformizam tudo e todos. O afastamento desse conjunto torna tudo ruidoso e confuso.

Na América do Sul temos outro Dostoievsky: Fontanarrossa, El negro.

Alfredo Roberto Fontanarrosa (1944-2007) foi um cartunista, quadrinista e escritor argentino. Durante sua longa carreira Fontanarrosa se tornou um dos mais aclamados artistas historieta de seu país, além de um respeitado escritor de ficção.

“As pessoas diriam que sou escritor de quadrinhos, no máximo, e isso será verdade. Não me importo muito com como as pessoas vão me definir como escritor. Não quero ser um ganhador do Nobel. Será o suficiente para mim se alguém me disser ‘Eu ri pra caramba com o seu livro’”, disse uma vez.

Mas rir sempre foi algo problemático, hoje mais do que nunca, com as patrulhas do politicamente correto tão vigilantes.

Sempre foi um subversivo inapreensível. Nos anos 1970, na revista Chaupinela, publicou uma série de paródias da literatura clássica universal, transformando completamente o cânone colonial.

Sua alcunha, El negro, foi garantida pela temática que acompanhou cada uma de suas criações, o clima noir foi seu território e sua pátria.

A classificação NOIR foi cunhada em 1946 pelo crítico francês Nino Frank para se referir a um tipo de longa-metragem de suspense que estava em voga nos anos 1940, com ambientação urbana, temática criminal e anti-heróis.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Fontanarrossa transpôs para os seus dilemas gráficos o mesmo dissenso.

Mas incluiu aí os mesmos princípios dostoievskianos, anti-americanismo, horror aos sinais do progresso e um cinismo diante dos avanços de uma civilização cada vez mais colonizada.

Seu anti-americanismo foi a munição que levava na lapiseira para a construção de Boogie, o seboso, uma paródia ácida da série de filmes Dirty Harry. Seu horror aos sinais do progresso foi expresso com maestria em seu personagem Inodoro Pereyra e seu cachorro falante Mandieta e sua postura rebelde diante da colonização e do império cognitivo vieram no bojo de suas charges do mundo do futebol. Seu refinamento é impressionante e não me parece estranho que hoje seu nome não seja mencionado, pois assim como ocorreu com o refinamento do escritor russo aqui mencionado, El negro não joga no time epistemológico que praticamos, mas opera em outro mundo, cuja diferença é marca irremovível.

Em 2003 foi diagnosticado com esclerosa lateral amiotrófica e no ano seguinte, com o comprometimento já avançado da doença, deu uma palestra absolutamente divertida sobre o tabu que seu estado exaltava. Essa característica irreverente, aliás, sempre marcou suas ações.

Morador de Rosário, El negro vivia mais no boteco El Cairo que na própria casa.

“Conhecemos um homem pelo seu riso; se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente”. Dostoiévski parecia se referir a ele nessa frase.

Um trecho de um conto seu acerca da ligação extraordinária entre as letras, típicas formulações herdadas dos colonizadores e o futebol como gana e raiva:

“Porque también la cosa está en los nombres, en cómo suenen, en las palabras, pero más, más en los nombres porque se puede estas transmitiendo agarrado al micrófono con las dos manos, casi pegando el fierro a la boca, y la camisa abierta, transpirada y abierta, los auriculares ciñendo las orejas y las sienes como un dolor de cabeza y ahí valen  los nombres, tienen que venir de abajo, carraspeados, desde el fondo mismo del esternón, tienen que llegar como un jadeo, lastimarte, tienen que ser llenos, digamos macizos, nutridos, eso, nutridos. Tienen que llenar la boca, atragantarla, que se los pueda masticar, escupir, como puede ser digamos Marrapodi, viejo, Marrapodi, ¡volóoo Marrapodi y echó al corner” (Los nombres).

Da mesma forma, numa das tiras de Boogie, uma mulher chama sua atenção: “Boogie, no puedes viver al margen de lo que te rodea!”, ao que ele retruca: “todo humano me es ajeno, Márcia!”. Nada pode ser mais cínico que essa afirmação em relação à humanidade inteira.

Escreveu um livro que é pista dessa interpretação aqui defendida: El mundo há vivido equivocado.

Ali podemos ler: “Por donde pasé dejé huella, después pavimentaron”.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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