Economia

Expectativas de inflação e a agiotagem autorizada

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A política monetária, tal como é desenhada no Brasil desde o Plano Real, se inclina aos desígnios rentistas. O que a independência do BC causou foi a sacralização da agiotagem como prática autorizada por uma entidade apartada das pressões da sociedade

Roberto Campos Neto

Nathan Caixeta*, Brasil Debate

Das cenas que inspiram tragédia, um banqueiro acuado é a mais cômica. Cômica e terrível, considerando a facilidade com que os arguidores do programa Roda Viva da TV Cultura, exibido no último 13 de fevereiro, deixaram Campos Neto escorregar no quiabo para fugir do debate sobre a soberba taxa de juros praticada pelo Banco Central.

Capturando as entrelinhas com a missão de traduzir as gírias que atiçam os ouvidos na Faria Lima, não passou despercebida a relevância atribuída por Bob Fields III aos caprichos expectacionais dos agentes financeiros.

No caldeirão do monetarismo, a noção de que os agentes atuantes na alocação de recursos líquidos são capazes de prever os movimentos da economia à frente da massa ordeira de trabalhadores-consumidores deu vida ao esqueleto institucional dos Bancos Centrais Independentes. Basta cortejar as expectativas lançadas pelo mercado para aconchegá-las ao que se entende como um nível razoável de inflação.

Na banda das independências, o sistema de metas de inflação patrocinou o afastamento das políticas de regulação da oferta de bens e serviços essenciais, deixando a política monetária como promotora solitária do combate à inflação. Por seu turno, a inflação é um fenômeno que se origina da expansão da demanda encomendada pelo aumento do gasto público, diria o Bob Fields original no mesmo Roda Viva décadas atrás.

Os antípodas do fiscalismo ainda celebram as amarras impostas ao endividamento público em 2016, com o Teto Gastos, como vitória da razão econômica contra os desfavores irracionais da política. O modelinho que suporta a sabedoria dos deuses-financeiros se fechou no automatismo entre as expectativa de inflação ancoradas no nível de dívida pública e a atuação corretiva dos Bancos Centrais como regulador da má gestão do Estado.

Nas palavras do Presidente do BC, a manutenção da taxa de juros em 13,75% se justifica pelo elevado prêmio de risco exigido pelos agentes financeiros para compatibilizar a inflação esperada com o ocioso exercício de emprestar ao Estado que exibe um nível crescente de endividamento. A tradução mais aceita é a seguinte: ou o governo esquece a expansão fiscal que tem planejado, ou a queda da taxa de juros é inviável.

Campos Neto chegou a citar a relação entre a inflação esperada e o endividamento do governo, atribuindo ao segundo item a razão de ser do primeiro. Entretanto, o dilema, aparentemente solucionado pelo mecanicismo da política monetária (maiores expectativas de inflação provocam aumento da taxa de juros), guarda soluções mais direcionadas pelo componente político-financeiro do que pela aplicação técnica do livrinho de feitiços consultados pelos magos do Conselho de Política Monetária, o Copom.

A política monetária é executada, grosso modo, dispondo da negociação de títulos da dívida pública emitidos pelo Tesouro Nacional. O BC define a taxa básica de juros como uma meta para a taxa de juros corrente praticada pelos bancos. Ao subir os juros, o BC vende títulos aos bancos, prometendo recomprá-los rapidamente, repondo os níveis das reservas bancárias, agora custeadas por uma taxa de juros maior. Na prática, o Banco Central absorve liquidez e desestimula a expansão do crédito bancário endereçado ao público que consome e investe.

O efeito sobre a dívida pública é imediato: toda dívida adicional é contratada custando mais ao governo, que deverá apertar os cintos para cumprir com maiores encargos financeiros junto aos agentes privados. Portanto, a decisão de elevar os juros, incitada pelos perigos do endividamento público, gera maior endividamento e o canal de transmissão dessa mágica são as expectativas de inflação.

O Copom ao decidir sobre a taxa de juros está olhando para os sinais do mercado sobre a inflação esperada. Ao respeitar a sinalização, a esperança do BC é que a tendência da inflação seja coibida no caso de estar fora da meta, ou reforçada para acertar em cheio o alvo, caso esteja na direção correta.

O aperto no crédito coíbe o consumo e os investimentos, freando a demanda e mudando a tendência entre a inflação observada no presente e aquela imaginada para o futuro. O risco percebido pelos agentes é abafado ao verificar o compromisso do Banco Central em combater as estrepolias inflacionárias da política fiscal.

Trata-se, portanto, de uma reverência à razão imperante nos mercados. Agora, imagine um padeiro que pode fixar o preço do pão quando der na telha, sabendo que todo pão será vendido… É justamente essa a posição dos opinantes sobre as expectativas de inflação, sabendo que ao elevarem suas previsões, o Banco Central, independentemente dos efeitos sobre a população e o orçamento público, elevará a taxa de juros.

O que explica a migração para os títulos públicos que exibem tamanho risco – como confessam as expectativas inflacionárias? Que as posições oferecidas pelos ativos privados estão muito mais arriscadas, deteriorando o valor patrimonial dos balanços financeiros. Os agentes privados demandam moeda, confiando que a expansão monetária do governo os salvará do calote de seus pares. Precisamente o ocorrido durante a pandemia.

Não espanta que, na lógica da agiotagem, sucumbir à tentação de explicar o aumento da inflação como decorrência do endividamento estatal seja tão atrativo para Campos Neto e para os assinantes do Boletim Focus. Os usurários arrepiam as barbas ao destacar suas preocupações com a inflação, encapando seus motivos pela gritaria “jornalesca” que pede por uma nova âncora fiscal.

O agiota não faz negócio sem seguro e, se o BC é independente, que a morte venha do orçamento público! Gritou a alma acuada de Campos Neto diante da banca avaliativa do mercado.

A política monetária, tal como é desenhada no Brasil desde o Plano Real, se inclina aos desígnios rentistas. O que a independência do BC causou foi a sacralização da agiotagem como prática autorizada por uma entidade apartada das pressões da sociedade. Não demora, o endividamento das famílias explode e a falta de investimentos frustra a tentativa do governo de fazer o país voltar a crescer.

O desemprego puxa o descrédito do Presidente da República, enquanto a piora das contas públicas exorta os grileiros da finança ao patrocínio midiático da austeridade. Algo como um “vale a pena ver de novo” do levante mercadista contra Dilma entre 2014-16.

Os agiotas separam a liquidez doada durante a pandemia para ancorar seus balanços nos títulos públicos. Insatisfeitos com a remuneração oferecida pelo Estado, balançam a estrelinha de funcionário do mês para Campos Neto que, embalado pela memória do vovô, não se contém de satisfação. As independências têm dessas: se a servidão a dois senhores confunde a alma, aquele que paga melhor leva a reverência do caboclo e seus descendentes.

* Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

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