Eduardo Bonzatto
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Colunistas 26/Jan/2023 às 19:39 COMENTÁRIOS
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Paroxismo

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 26 Jan, 2023 às 19h39
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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Paroxismo é o estágio de uma doença em que os sintomas aparecem de modo mais intenso, geralmente expressa sua evolução. O momento em que uma dor está mais intensa. Convulsão; contração violenta causada por alterações no sistema nervoso central.

O que é ‘gaslighting’, a palavra do ano do dicionário de inglês Merriam-Webster?

O uso dessa palavra na abundância de 2022 pode indicar um paroxismo social importante.

Segundo o jornal da BBC, a palavra pode exibir um comportamento de paroxismo em relação às patologias sociais.

Quando o dramaturgo britânico Patrick Hamilton escreveu em 1938 a peça Gas Light (luz a gás, em tradução literal), mal sabia ele quantas vezes o título de sua obra seria empregado no século 21.

A Merriam-Webster, a editora de dicionários mais antiga dos Estados Unidos, escolheu “gaslighting” como a palavra do ano.

As pesquisas pela palavra no site da Merriam-Webster aumentaram 1.740% em 2022, segundo a empresa.

Gaslighting é o ato ou prática de manipular alguém psicologicamente, distorcendo ou falsificando fatos ou informações em benefício de quem manipula a outra pessoa.

A palavra é também bastante usada no contexto de situações de abuso em relacionamentos.

Curiosamente, o interesse de pesquisa na palavra não foi impulsionado por nenhum evento específico, disse um editor da Merriam-Webster à agência de notícias Associated Press.

“Foi uma palavra pesquisada com frequência todos os dias do ano”, afirmou Peter Sokolowski.

Precisamos ajustar a distância entre o aparecimento da palavra e sua vulgarização atual. Pois essa jornada implica em alterações do tecido social e compreender tais alterações pode também nos auxiliar a não jogar mais lenha na fogueira.

Na peça de Patrick Hamilton o personagem do marido tenta convencer a esposa de que ela está ficando louca, quando ela afirma que a luz a gás que ilumina o interior da casa está ficando fraca, o marido diz que isso é por conta de sua imaginação, pois tudo continua o mesmo.

Essa alusão à incapacidade de esposa em discernir a realidade era então um sutil convencimento e uma sugestão.

Nesse período o paternalismo ainda era parte de uma educação dos sentidos e o seu reconhecimento era partilhado por boa parte da população. Essa pedagogia despreza a violência, pois se sustenta numa “verdade universal” de que o homem é o senhor da heteronomia.

Tecer a linha que traz a necessidade de justificar a incapacidade da esposa aos relacionamentos abusivos e aos empoderamentos atuais envolvem o só aparente declínio do paternalismo e encontramos algumas liberdades como a necessidade de trabalho, a liberação feminina, o consumismo, os empoderamentos, cada um desses momentos dissolvendo sua monumentalidade.

Os monumentos guardam e querem preservar uma memória específica da história e da realidade e podem eventualmente sofrerem agressões sociais contra sua estrutura de concreto e aço, mas ficarão por aí marcados como um tempo que não deseja ser exumado.

Podemos ler nessa monumentalização do real três níveis de ordenamentos: pelo trabalho, durante o século XX, pela banalidade, no século XXI e finalmente na varredura do caos, que sempre ocupou um substrato pouco importante para os diretores do poder executivo.

Essa linha em que transitamos voluntariamente pelo trabalho, voluntariamente pela banalidade das exposições nas redes midiáticas, no controle das narrativas tem nos conduzido diretamente ao momento em que basta considerar uma ideia para que ela seja original e única, pouco importa se de um jeito ou de outro, todos atuam na mesma nomenclatura.

De fato, essa falta de distinção tem sido responsável pela ilusão da identidade e por conter nela própria os primórdios dos confrontos. Mas os confrontos, como se pode imaginar, servem unicamente para tecer novas narrativas. E cada narrativa visa controlar a percepção da realidade de cada um dos contendores. É justamente essa ilusão que faz parte da mais contundente exibição de banalidade, pois cada um imagina que realmente domina o espectro generoso que lhe foi oferecido.

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Essa forma de manipulação, diga-se de passagem, não é consentida como uma habilidade pouco usual, mas é uma cartilha que está disponível nos variados níveis dos discursos, sejam culturais (as apreciações dos gostos), políticos (polarizações), afetivos (as cansativas DRs), dentre outros. Cada um arregimentando argumentos no mesmo nível das linearidades e dicotomias.

Mas o alastramento de uma palavra que denota tais convenções só poderia se explicada como um agravamento das patologias sociais.

O sistema onde se ancora a visão de mundo foi tecido com muita cautela ao longo dos últimos quinhentos anos.

Primeiro surgiu como uma soberania do humano sobre todas as outras formas de vida. Depois do humano especial sobre outros humanos. Nesse sentido é um sistema de representação e de crença baseado em determinismos e contradições.

Aqui temos o surgimento de dois dispositivos que serão fundamentais para a edificação de um território: a racionalidade e o pensamento. Esse território então precisa ser construído como nação, como história, como hierarquias.

Só então poderia ser um sistema de produção baseado no trabalho como natural biológico nos termos de Marx.

O século XX enfrentou a fartura das contradições até o surgimento da ideologia do consumismo encontrando a melhor forma de reproduzir-se impulsionado pelas mãos naturalizadas do próprio trabalhador. Aqui a reprodução de uma desigualdade inaugural encontra os trilhos naturais que expurgam as mulheres no núcleo familiar para o mundo exigente do trabalho.

Esse é o ponto seguinte às sutilezas da desigualdade do lar, em que a dupla função do trabalho feminino se impõe carregando consigo a primeira queda paternalista.

A segunda virá à tona quando a pauta por direitos encontrar no seio do lar uma mulher exausta. Ela então irá demandar e aceitar o poder como capital emancipatório, imaginando que com isso poderia finamente superar o paternalismo mimético que é o próprio poder intersubjetivo.

Mas o poder disponível é também um estágio de cognição e carece de aprendizados específicos.

Quando não explode diante do velho poder patriarcal com consequências desastrosas, se atenta para o domínio dos discursos em que se ocultam o controle das narrativas.

Aqui temos um confronto basicamente entre os novos portadores dos empoderamentos que não carregam nenhuma história de domínio e precisam dominar os discursos e os velhos e preguiçosos senhores da velha heteronomia que carregam consigo tão somente os dispositivos da violência.

Se sugerem que a mulher está louca ao mencionar a pouca luminosidade dos lampiões a gás, recebem um contragolpe verborrágico insuportável. Os novos empoderados dominam de modo eficiente: quando um empoderado acusa outro de machismo, de racismo, de homofobia, não precisa de nenhuma evidência de sua acusação já que se encontra continuamente no lado do ofendido historicamente dado e só pode estar certo. Eis aqui o controle das narrativas em sua forma menos elaborada.

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Mas considerar que é pouco elaborada a forma com que a Gaslighting é utilizada pelos consortes do poder na banalidade não significa absolutamente que não seja eficiente.

No espectro político, basta municiar a boca com dentes populistas em defesa da democracia, dos pobres, da igualdade que a mente preparada para anunciar sua própria zona de narrativas consuma toda sorte de certezas e de verdades.

Essa forma de manipulação foi se tornando natural e aquele que a utiliza não consegue perceber que o faz, daí toda carga de honestidade que essa manipulação carrega.

Por isso Jean Baudrillard chamou de segunda queda do homem, a queda na banalidade. A exibição de si para um mundo igualmente virtualizado escapa de seus agentes sua natureza ilusória e se transmuta em verdade e potência.

A força de se acreditar na própria ilusão é irresistível e não há consolo para todos aqueles que declinam de sua humanidade em nome da auto exibição (empoderamento, controle de narrativas), pois não compreendem que a auto exibição é apenas uma nova forma de objetificação, exceto que já não é construída como alienação pelas estruturas de poder: é já uma vocação em paroxismo para a edificação do reino da desumanidade e uma responsabilização pela miséria do mundo.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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