Corrupção

Transparência Internacional confirma que Orçamento Secreto pode ser maior caso de corrupção da história

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Organização focada no combate à corrupção, Transparência Internacional afirma que o Orçamento Secreto de Bolsonaro é o "maior processo de institucionalização da corrupção que se tem registro no Brasil

Imagem: Miguel Schincariol | AFP

Mariana Schreiber, BBC

O debate sobre o chamado Orçamento Secreto voltou a esquentar depois que viralizou na quinta-feira (06) um vídeo sobre o tema da senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata derrotada à Presidência da República.

Por que os atuais escândalos de corrupção não ganham as manchetes diárias?

Na gravação, Tebet destaca a falta de transparência desse instrumento e diz que “podemos estar diante do maior esquema de corrupção do planeta Terra”.

A fala é um trecho de uma entrevista concedida ao podcast Flow ainda durante a campanha, em agosto. Após ficar em terceiro lugar no primeiro turno, com 4,16% dos votos válidos, ela declarou apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que disputa o segundo turno contra o presidente Jair Bolsonaro (PL).

No vídeo, Tebet lembra que o chamado Orçamento Secreto deve contar com R$ 19,4 bilhões em 2023, segundo a proposta de lei orçamentária encaminhada pelo presidente ao Congresso. Ela ressalta que esses recursos são enviados por parlamentares para gastos pelo Brasil sem transparência e com baixa capacidade de fiscalização pelos órgãos de controle.

A senadora cita ainda casos com fortes indícios de desvios públicos revelados pela revista Piauí em junho. Essa reportagem mostrou como municípios do Maranhão inflaram artificialmente os números de atendimento pelo SUS para receber uma fatia maior das emendas do relator (nome oficial do chamado Orçamento Secreto), que passaram a contar com bilhões de reais a partir de 2020.

Relator, nesse caso, é o parlamentar que relata a lei orçamentária e, por isso, controla formalmente a distribuição desses recursos no ano seguinte. O deputado Hugo Leal, do PSD do Rio de Janeiro, relatou em 2021 a lei que define o orçamento deste ano e tem a caneta para gerir os R$ 16,5 bilhões reservados para o chamado Orçamento Secreto em 2022.

A destinação dos recursos, porém, é definida a partir da negociação com o Palácio do Planalto e outras lideranças do Congresso, em especial os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Orçamento secreto: entenda o esquema bilionário de Bolsonaro para se manter no poder

Uma crítica recorrente a esse processo é que não há transparência sobre qual parlamentar solicitou quais recursos para qual finalidade e quais pedidos foram atendidos ou não.

“O relator, ele vai sozinho comandar R$ 19 bi (em 2023). Pro (Poder) Executivo, (o pedido do relator para liberar) esse dinheiro vai, mas ele vai sem rubrica, sem autoria (do parlamentar que definiu o uso do dinheiro). Ele é secreto porque eu não sei (quem está por trás da decisão do gasto)”, disse Tebet ao podcast.

“Podemos estar diante do maior esquema de corrupção do planeta Terra. Exemplo: numa cidade do interiorzinho do Maranhão, (a população) fez mais exame de HIV que toda a cidade de São Paulo, de 12 milhões de habitantes. Tem uma cidade que diz que extraiu num único ano 540.000 dentes, (uma cidade) pequenininha. Significa ter tirado 14 dentes de cada boca, de cada cidadão da cidade, inclusive do bebê recém-nascido que não tem dentes”, continuou, ao citar os casos revelados pela revista Piauí.

Na avaliação da senadora, esses números não fazem sentido e podem significar uso de “nota fria” para desviar recursos que não foram de fato utilizados nesses procedimentos de saúde.

“Pode ter dinheiro saído de Brasília, chegado lá, ido pro bolso de alguém. Não tem sentido as menores cidadezinhas do Maranhão receberem os maiores recursos desse orçamento. E aí você vai puxar a fila (da autoria dos gastos), porque ele é secreto, não sei de onde saiu, quem foi o autor, e eu não consigo controlar”, conclui na gravação que viralizou.

Maior escândalo de corrupção do planeta?

O chamado “Orçamento Secreto” começou a funcionar a partir do Orçamento federal de 2020, após o Congresso aprovar em 2019 a Lei Orçamentária do ano seguinte prevendo, pela primeira vez, R$ 30 bilhões a serem gastos por meio das emendas de relator.

Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro vetou essa novidade no Orçamento. Depois, porém, ele aceitou negociar com o Congresso e cerca de metade dos R$ 30 bilhões foram mantidos para as emendas do relator de 2020.

A partir de então, o chamado Orçamento Secreto passou a ser um instrumento importante para construir uma base de apoio ao governo no Parlamento e afastar o risco de um processo de impeachment, avalia a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, estudiosa do funcionamento do Poder Legislativo no Brasil e nos Estados Unidos.

Os possíveis desvios revelados pela revista Piauí não são os únicos indícios de corrupção envolvendo o chamado Orçamento Secreto. A novidade não tem nem três anos de duração e já houve uma série de denúncias reveladas pela imprensa brasileira, em especial pelo jornal O Estado de S. Paulo, primeiro veículo a destrinchar o funcionamento das emendas de relator.

Em reportagem de maio de 2021, por exemplo, o jornal revelou que ao menos R$ 271,8 milhões foram usados para aquisição de tratores, retroescavadeiras e equipamentos agrícolas, em geral por valores bem acima dos previstos na tabela de referência para compras do governo, num indício de compras superfaturadas.

Na avaliação da Transparência Internacional Brasil, organização focada no combate à corrupção, não é possível dizer se o Orçamento Secreto é o maior esquema de desvios de recursos do planeta.

Bruno Brandão, diretor executivo da organização, afirma que não há parâmetros para cravar isso justamente porque nem toda corrupção praticada é descoberta, de modo que não há números oficiais que permitam comparar diferentes esquemas pelo mundo.

Ainda assim, ele diz que é possível afirmar que o chamado Orçamento Secreto é “extremamente grave”. Para a Transparência Internacional, trata-se do “maior processo de institucionalização da corrupção que se tem registro no país”.

O termo “institucionalização da corrupção” é usado, explica Brandão, porque, no caso das emendas do relator, está sendo usado um mecanismo institucional, que existe dentro da lei orçamentária, para dar um “verniz legal” a uma “prática corrupta”.

“O que a gente chama de institucionalização da corrupção é uma forma de dar um verniz legal, institucional, a uma prática absolutamente corrupta na sua essência, que é a apropriação do erário público para interesses privados, sejam eles políticos, de reprodução de poder, ou pecuniários mesmo, interesses materiais”, disse à BBC News Brasil.

“E, nesse caso, com imensa escala”, destacou ainda.

Mensalão x Petrolão x Orçamento Secreto

Desde 2020, já são cerca de R$ 45 bilhões empenhados pelo governo para gastos das emendas de relator, segundo levantamento da revista Piauí. O valor empenhado é aquele que já foi de fato reservado para o pagamento.

A grande dimensão desses valores tem levado críticos do atual governo a comparar o Orçamento Secreto com escândalos de corrupção dos governos no PT. No caso do chamado Mensalão, o Ministério Público concluiu em 2012 que foram desviados ao menos R$ 101 milhões, por meio de fraudes envolvendo contratos de publicidade de órgãos públicos.

Já no caso do chamado Petrolão, R$ 6 bilhões desviados da Petrobras foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações.

As dezenas de bilhões do chamado Orçamento Secreto têm sido usadas pelos parlamentares para gastos e investimentos em seus redutos eleitorais, como obras, compras de equipamentos e realização de procedimentos médicos. Não se sabe quanto desse total pode estar sendo desviado em esquemas de corrupção.

Na avaliação de Bruno Brandão, da Transparência Internacional Brasil, a falta de controle sobre esses recursos abre espaço para que uma grande parcela esteja sendo roubada.

“Esse esquema permite isto (desvios de recursos) numa escala talvez não conhecida até hoje e numa forma de pulverização da corrupção, porque é um recurso do orçamento federal jorrando para as localidades que têm menor capacidade institucional de controle. E ainda, além disso, desviando dos mecanismos regulares de transparência e controle do ciclo ordinário orçamentário”, afirma.

“Corrupção não é o único problema”

Para Brandão, porém, o problema não está apenas no desvio de recursos públicos. Na sua avaliação, há outros pontos graves envolvendo o Orçamento Secreto.

Um deles é o fato de, num Orçamento já escasso, uma parcela grande de dinheiro estar sendo retirada de outras despesas importantes para bancar gastos de interesse dos parlamentares.

Um exemplo disso, cita o especialista, é o corte previsto de 59% nos recursos para parcela gratuita da Farmácia Popular, que inclui medicamentos do tratamento da asma, hipertensão e diabetes.

Segundo reportagem do jornal Estado de S Paulo, enquanto a proposta de orçamento para 2023 prevê aumento dos recursos destinados às emendas de relator, a proposta do governo Bolsonaro para a Farmácia popular é de R$ 842 milhões, o que representa um corte de R$ 1,2 bilhão no valor previsto para 2022 (R$ 2,04 bilhões).

Na sua visão, esse tipo de troca — recursos retirados de programas de Estado para engrossarem as emendas — reduz a “eficiência do gasto público”. O problema, diz, é agravado pela falta de critério na hora de distribuir os recursos pelo país, já que uma cidade que talvez tenha mais carência de investimentos pode estar perdendo recursos para outras que são reduto eleitorais de deputados e senadores aliados do governo.

Desequilíbrio na corrida eleitoral

O diretor da Transparência Internacional Brasil cita ainda outro elemento preocupante envolvendo as emendas do relator: a distribuição desses recursos afeta o equilíbrio na disputa eleitoral, enfraquecendo a própria democracia brasileira.

“Talvez esse seja o aspecto mais profundo (do Orçamento Secreto): perverter o processo democrático. Quem se apropriou desse recurso público utilizou para ganhar favores políticos e apoio nessas bases e assim ganhar eleições e se manter no poder. E são justamente as forças mais corruptas que tiveram esse benefício. O resultado agora já mostrou que deu certo. (Esses parlamentares) se mantiveram no poder, o que há de mais corrupto, mais podre na nossa classe política”, critica.

Levantamento da revista Piauí publicado na sexta-feira (07/10) mostrou que “os principais partidos do Centrão (PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota) contaram com mais de R$ 6,2 bilhões de recursos das emendas de relator – uma bolada que ajudou a garantir a reeleição de pelo menos 140 parlamentares”.

“Esse valor é superior aos R$ 5,7 bilhões de recursos do fundo eleitoral distribuído entre todos os partidos. Só no PL, de Bolsonaro, 60 deputados reeleitos puderam destinar às suas bases R$ 1,6 bilhão vindos das emendas de relator”, diz ainda a reportagem.

O levantamento mostra ainda a discrepância da distribuição de recursos entre parlamentares de diferentes partidos.

“Cada deputado reeleito desse Centrão expandido teve, em média, R$ 42,8 milhões de orçamento secreto. O montante é 470% acima da média recebida pelos deputados reeleitos pela coligação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, PCdoB, PV, Psol, Rede, PSB, Avante, Solidariedade, Pros) – R$ 7,5 milhões cada”, afirma a reportagem da Piauí.

Os valores analisados pela revista, porém, incluem apenas uma parte do chamado Orçamento Secreto, já que não há transparência total sobre esses recursos.

“A base de dados analisada pela piauí só leva em conta R$ 19 bilhões, dentro de um valor global de R$ 45 bilhões já empenhados (reservados para gasto), restando ainda outros R$ 8 bilhões a empenhar até o fim do ano. Esses R$ 19 bilhões são valores somados entre indicações que se tornaram públicas depois que o Supremo Tribunal Federal determinou transparência e outras planilhas internas do governo obtidas pelo repórter ao longo dos últimos dois anos”, diz a reportagem, assinada por Breno Pires.

O que decidiu o STF

Após o Orçamento Secreto ser questionado no Supremo Tribunal Federal, a Corte determinou que o Congresso desse total transparência às emendas do relator. Em resposta, a Comissão Mista de Orçamento criou um portal em que os pedidos passaram a ser registrados. Mas, para especialistas em transparência, a ferramenta ainda é insuficiente.

Um dos problemas apontados é que é possível inserir como autor do pedido não apenas nomes de parlamentares, mas também pessoas, entidades e órgãos de fora do Congresso. A organização Contas Abertas fez um levantamento dos dados disponíveis e encontrou uma série de inconsistências.

“Dentre os R$ 12,3 bilhões das indicações dos ‘autores’, cerca de R$ 4 bilhões, ou seja um terço das indicações, são atribuídas a ‘usuários externos’. Dentre os usuários externos, existe um classificado simplesmente como ‘assinante’, que indicou R$ 23,6 milhões em emendas de relator”, exemplificou o economista Gil Castello Branco, diretor da organização Contas Abertas, em resposta por escrito à BBC News Brasil em setembro.

Outro problema, acrescentou Castello Branco na ocasião, é que esses dados continuam fora dos sistemas que permitem fiscalizar melhor os gastos do governo federal, como Siga Brasil e Portal da Transparência.

“Os dados mostram que os recursos bilionários são distribuídos sem qualquer critério técnico ou parâmetro socioeconômico, o que distorce as políticas públicas e amplia as desigualdades regionais e municipais”, ressaltou.

Bolsonaro diz que responsabilidade é do Congresso e Lira defende emendas do relator

Bolsonaro tem buscado se distanciar do tema, insistindo que o chamado Orçamento Secreto é uma iniciativa do Parlamento.

“Pelo amor de Deus, para com isso. O orçamento secreto é uma decisão do Legislativo que eu vetei, e depois derrubaram o veto”, disse, ao ser questionado por uma jornalista nesta segunda-feira (02/10).

Na sequência, ao ser interpelado sobre ter recuado do veto, respondeu com irritação e deixou o local da entrevista: “Quem recuou do veto? Ah, eu desvetei? Desconheço ‘desvetar'”.

Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), costuma defender as emendas de relator dizendo que o parlamentar conhece melhor a realidade dos municípios e, por isso, estaria mais preparado para decidir onde aplicar os recursos federais do que as equipes dos ministérios — argumento que é refutado por estudiosos da administração, como a professora da FGV e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane.

Na semana passada, ele voltou a usar esse argumento e sustentou também que o novo instrumento orçamentário terminou com o “toma lá dá cá” entre Planalto e Congresso.

“Emendas de relator são lícitas, constitucionais e democráticas. São, além de tudo, uma posição do Parlamento contra as práticas que levaram a crimes do mensalão, captação de apoio político por compra de votos no Congresso. Isso que não pode voltar”, disse Lira em entrevista à Rádio Bandeirantes.

“Usar isso como bandeira de campanha é um erro, vai prejudicar muitas pessoas que tiveram melhorias em suas vidas. É melhor o parlamentar fazer as indicações porque sabe mais das necessidades do povo, do que um ministro que não teve um voto e não conhece o Brasil. Essa prática libertou o Congresso do toma lá dá cá”, afirmou também.

Já o relator do Orçamento, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), refutou que as emendas do relator sejam um “Orçamento Secreto”, em entrevista do final de setembro ao portal de notícias O São Gonçalo, veículo da baixada fluminense.

“E sobre a famosa polêmica das emendas do relator que passou a ser chamada fora do Congresso de ‘Orçamento Secreto’, eu digo que não existe absolutamente nada de secreto. Se tivesse o ‘orçamento secreto’ o Supremo não deixaria fazer e o TCU também não. O que existe é a discussão de critérios de distribuição, mas não existe o orçamento ‘secreto’. Ele passa por toda a análise pública dos três poderes, e obviamente da Câmara e do Senado”, argumentou.

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