Educação

Pangeia, Jerusalém e as cartas náuticas de Colombo

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

O conceito de epistemologia foi sendo reduzido ao longo do século XX para justificar um determinado cânone.
A resultante deste processo em que sua própria definição torna absoluto o que deveria ser relativo, e desrespeitoso ao que deveria ser simplesmente diferente. Vejamos seu significado:

Reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento humano, especulação das relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o objeto inerte, as duas polaridades tradicionais do processo cognitivo, do pensamento linear e dicotômico que concebeu a teoria do conhecimento.

Frequente estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história; teoria da ciência.

Como vemos, esses conceitos de epistemologia nos fazem acreditar que ela carrega as teorias fundamentais do pensamento científico em toda sua abrangência. Mas isto só é válido a partir da consagração das verdades universais necessárias à estruturação da visão científica do mundo, o que implica em determinadas metodologias recursivas as provas das mesmas verdades universais.
Superando essa limitação conceitual, epistemologia depende e refere-se a visões de mundo e estas são consumadas por experiências de grupos na multiversidade que se encontra muito além dos processos de colonização eurocêntricos.
Para escapar da redução epistemológica consagrada e reconhecer que existem processos pluriepistêmicos, precisamos congregar linhas de fuga que possam oferecer visão de mundo diferente e não desigual.
Essas reflexões contém ousadias (e certamente serão tratadas como imbecis, já que a ideia de pluriepistemologia é um mero exercício de fatuidade teórica) e imaginações para que a concepção de uma visão de mundo diferente possa se consolidar.
O conceito de pangeia refere-se ao supercontinente que compunha a superfície terrestre dos períodos Permiano ao Triássico. Essa massa única era banhada também por um único oceano, chamado de Pantalassa. A separação da Pangeia, que deu origem à configuração dos continentes como hoje conhecemos, teve início há 230 milhões de anos.
Imaginar uma estrutura dessa significa reconfigurar toda a nossa percepção de como é o planeta, pois, por mais forte que seja a nossa crença numa visão de mundo esférico, essa percepção será abalada por um montículo de terra cercado de mar a boiar no éter cósmico.
Por outro lado, se aí houvesse especuladores, certamente iriam considerar que navegar por esse mar infinito culminaria em algum precipício insondável.

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Milhões de anos se passariam até que uma outra crença global ganhasse seu mapa.
Os cristãos imaginavam que Jerusalém era o centro do mundo, o mapa abaixo foi confeccionado num tempo cujo registro se perdeu.
Foi parar na catedral de Hereford que tem esse património único: um mapa que mostra como na época medieval se podia representar o Mundo em termos espirituais e geográficos.

É o maior mapa tão antigo de um mundo que sobreviveu e foi desenhado numa única folha de pergaminho, mostra a imaginação de quando Jerusalém era o centro do mundo – centro da vida, mas também da espiritualidade. À sua volta foram desenhados outros edifícios, animais, seres que nunca existiram, constando rotas de peregrinação e de trocas comerciais.
Sobrepostos aos continentes estão representações dos povos e das espécies que existiam. São cerca de 500 desenhos onde se incluem 420 vilas e cidades, 15 eventos bíblicos, 33 plantas, animais, pássaros e criaturas com representações estranhas. Há ainda 32 imagens de povos do mundo e oito de mitologias.

Sua representação concebe um mundo de sentidos resolutamente apreensíveis em que o horizonte conhecido e desconhecido marca presença numa cosmogonia de mundo absolutamente plana.
Corresponde perturbadoramente a visão de mundo de Cosme Indicopleustes (literalmente “o que viajou para a Índia”), de Alexandria, foi um mercador grego e depois um monge, provavelmente com tendências nestorianas. Viajou por um longo período durante o século VI e foi diversas vezes à Índia durante o reinado do imperador bizantino Justiniano (r. 527–565). Sua Topografia Cristiana contém alguns dos mais antigos e famosos mapa-múndis conhecidos. Este que apresentamos aqui denuncia a mesma cosmogonia:
Não deixa de ser curioso que entre as cartas náuticas de Colombo em sua peregrinação para conseguir recursos em diversos reinos de sua viagem transatlântica, o argumento principal de que no horizonte não havia um abismo insondável engolidor de embarcações foi justamente o mapa retilíneo de Cosme Indicopleustes.
Os indícios aqui reunidos para compor uma visão de mundo que sustente outra epistemologia não podem ser simplesmente ridicularizados ou ignorados, pois congregam evidências sensoriais que hoje, misteriosamente ou não, são negadas pelas pessoas que conferem aos sentidos as verdades universais e não o que eles lhes dizem.
A visão já não pode existir desacompanhada das afirmações da ciência que se tornou o novo Deus do fascismo epistemológico.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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