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Colonizador ou Colonizado?

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A morte de uma rainha que ocupou o coração das metrópoles por quase todo século XX, representa um momento adequado para se falar de colonização.
As velhas fórmulas que ocuparam as relações de dominação e cuja herança nenhum país do mundo pode mais recusar, a colonização se tornou ubíqua.
Isso é problemático porque se é verdade que no bojo das expansões colonizadoras as estruturas de poder foram se consolidando, também é verdade que não pode haver ação de poder numa única direção.
As estruturas que viajaram o mundo nos barcos, no aço e nos germes cumpriram um circunlóquio e voltaram ao coração dos reinos metropolitanos.
Se as ferramentas coloniais modificaram completamente a enorme diversidade de culturas de fazeres de conexões, a imposição de seus fundamentos foi criando assimilações mutualistas. Então a agressiva modificação dos modos de vida foi respondida com agressivas lutas anticoloniais.
Mas nessa agressividade mútua colonizadores e colonizados foram se espelhando tornando cada vez mais difícil perceber as diferenças.
Mais recentemente os similares avatares dos colonizadores perceberam que não bastava vencer as guerras de descolonização e bradarem a independência, pois o gerne havia sido inoculado em cada ser.
Os novos protocolos exigiram também um terno novo, decolonialidade é o território das novas lutas.
Aqueles que foram subalternizados nas novas nações liberais perceberam que a liberdade é só um lema das constituições.
Mulheres, negros, homessexuais, consumidores sentiram a opressão colonizadora nos mesmos moldes que seus ancestrais sentiam a presença dos exércitos nos seus territórios.
A ofensa que a presença causava demandou guerras sangrentas até que a independência se realizasse. Agora uma onda parecida movida por empoderamentos diversos ofende aqueles que na estrutura herdada dos colonizadores continuavam oprimidos.
Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto
Queriam a igualdade que imaginavam existir nas metrópoles e aqui nesse querer, queriam ser colonizadores também, pois o que a colonização erradicou foi a enorme diversidade de vidas, oferecendo justamente a promessa da igualdade.
Mas a igualdade é um cálculo da apropriação do poder como forma de relação e do mesmo jeito que as lutas anticoloniais construíram nações similares as metropolitanas, os empoderamentos constroem colonizadores ideias que clamam por justiça em busca de privilégios.
Isso cria um problema aparentemente sem resolução porque cada ação que repele o modelo colonizador o repete.
O circunlóquio pode ser atestado no grande espetáculo da morte da rainha.
Se o poder que ela representava exibia uma relação de papéis desiguais entre ela e o seu consorte, atesta justamente a desigualdade no núcleo mais importante da herança colonial.
A família nuclear resultado da própria estrutura hierárquica da colonização e que em sua expansão foi destruindo e assimilando as famílias extensas e as tribos, não deixou impune o próprio núcleo da representação de poder da casa real.
Romper com esse ciclo vicioso de ação e reação precisa que compreendamos em que ele se ancora, pois acreditamos que uma dada ação exige uma determinada reação:
É a lei de causa e efeito que é de fato o cerne da colonização.
Essa lei surge de uma visão de mundo que nasceu como fundamento do poder, já que o poder carece de separações.
É preciso dizer que a diversidade só pode existir sem essas separações e que as separações erradicam a diversidade. A separação fundamental que inaugurou o modelo colonial foi a retirada do humano da natureza. Essa soberania conferiu ao humano naturalmente um estatuto superior.
Como justificar essa superioridade?
Ora porque os pensadores que criaram a separação atribuíam esse poder ao seu próprio pensamento.
Não foi difícil separar homem de natureza, homem de mulher, homem branco de homem preto, homem culto de homem ignorante, homem rico de homem pobre, instaurando a dicotomia como elemento organizador do social.
Acreditar nessa dicotomia cuja característica fundamental é a própria racionalidade e a visão de mundo que ela carrega torna inescapável qualquer um que a utilize como visão de mundo e como modo de vida.
A racionalidade que como vemos é a própria visão de mundo que se sustenta basicamente por narrativas e discursos, a orientar toda a realidade e portanto todas as relações. Isso torna qualquer ação alimentada por essa estrutura como reação a ela e como reprodução da mesma estrutura, sendo inútil seguir por esse caminho.
Seria impensável escapar dos determinismos coloniais utilizando dos recursos intelectuais, já completamente dominados pela visão de mundo colonial, mas seria indigno e absolutamente desumano não acreditar numa saída do mundo colonial. Como podemos acompanhar nos argumentos acima a racionalidade é a própria colonização e reconhecer essa ubiquidade exige de nós uma ousadia muito mais ancestral.
Para resgatar a diversidade que existia antes do processo colonizador, precisamos compreender o significado do termo conexão em antecedência ao termo relação.
A relação traduz o elemento fundamental da colonização e sempre implica em desigualdade entre os sujeitos, a conexão por outro lado busca estabelecer uma ligação direta entre todos os seres de tal sorte que todos os seres se tornem nossos próximos. Isso só é possível na experiência do encontro, a experiência em si não carece de julgamento, de avaliação, de redução nem tão pouco de desumanização, sendo um encontro virtuoso entre os seres.
Como se vê basta o respeito e o reconhecimento da alteridade do outro que em si é pleno, não precisa se ensinado, não precisa ser educado, não precisa ser elevado.
Não deixa de ser irônico que o novo Rei Charles tenha em português a mesma sonoridade que o Ray Charles músico, preto, cego cumprindo uma vez mais o circunlóquio colonial, que aproxima irremediavelmente colonizador e colonizado.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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