Aborto

Ministério da Saúde quer investigar mulheres estupradas que realizarem aborto

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"Todo aborto é crime". Cartilha do Ministério da Saúde propõe que mulheres vítimas de estupro sejam investigadas após aborto. Documento gera 'insegurança jurídica' e está em desacordo com a legislação, diz advogada

Marcelo Queiroga, Jair Bolsonaro e Raphael Câmara (Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom | ABr)

Um documento do governo federal disponível no site da Biblioteca Virtual em Saúde, do Ministério da Saúde, diz que “não existe aborto ‘legal’” e defende que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam comprovados após “investigação policial”.

O manual é assinado pelo secretário nacional de Atenção Primária da pasta, Raphael Camara; pela diretora do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Lana Aguiar Lima; e por Patrícia Marcal, assessora jurídica do Ministério da Saúde.

Leia, abaixo, o trecho completo:

“Não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”.

A cartilha “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” está disponível em um dos endereços do governo federal no formato PDF e foi divulgada inicialmente pelo jornal “Gazeta do Povo”.

Imagem: Cartilha MS

O que diz a Lei

No país, o Código Penal trata, desde 1940, do aborto nos artigos 124 a 128, e a pena para a mulher que o praticar é de um a três anos de detenção. O procedimento só não é punido em caso de estupro ou risco de morte para a gestante.

Em 2012, o STF decidiu que também era permitido em caso de anencefalia fetal. No campo da saúde, o tema é tratado nos textos “Atenção Humanizada ao Abortamento”, primeira edição de 2005 e “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, em vigor desde 1999.

As normas definem, por exemplo, um atendimento multidisciplinar em caso de estupro, apontam documentos e procedimentos que a equipe deve adotar e afirmam que, nesses casos, não pode ser exigido nem boletim de ocorrência nem decisão judicial das vítimas.

Apesar disso, a pesquisa “Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional”, realizada por Alberto Pereira Madeiro e Debora Diniz, mostrou que, além de poucos serviços desse tipo no país, muitos exigem documentos desnecessários e retardam o atendimento das pessoas que desejam interromper uma gestação nas situações previstas em lei.

Especialista rebate conceito

De acordo com Marina Ruzzi, advogada especializada em gênero e atuante em causas relacionadas à área da saúde em São Paulo, a afirmação de que “não existe aborto ‘legal'” é incorreta, segundo a legislação do Brasil, e ainda causa “insegurança jurídica”.

“É bem esquisita a frase deles, que eles repetem à exaustão. A gente entende que o aborto é crime, exceto em três hipóteses: duas estão previstas no código penal, no caso de risco de morte materna e em casos de estupro; e o STF decidiu em 2012 também pela possibilidade do aborto em caso de feto anencefálico”, explica.

“Então, se não são crimes, elas são legais. São regulamentadas pelo poder público, pelo Ministério da Saúde. Assim, falar que ainda assim o aborto nessas condições é ilegal, isso é, visivelmente, um argumento retórico muito torto para justificar a carga de moralidade em cima dessas condutas”.

Investigação policial segue portaria de 2020

A defesa da investigação policial dialoga com a portaria do Ministério da Saúde Nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que dispõe sobre o “procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez” e exige a notificação da denúncia de estupro em caso de atendimento a saúde.

O texto da nova cartilha tem a seguinte explicação sobre o ponto:

“Com o objetivo de investigar o estupro e não o aborto, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.561/2020, que determina a notificação dos estupros que ensejam interrupção de gravidez, com preservação de material para fins periciais. Importante consignar que essa iniciativa não objetiva verificar se a mulher faltou com a verdade ao noticiar ter engravidado em relação sexual forçada, mas fazer com que o aparato repressivo crie condições para identificar e punir o agressor”, afirma o texto.

Ainda em vigor, a portaria foi bastante criticada à época de sua publicação por entidades e ativistas ligados à defesa dos direitos da mulher e da igualdade de gênero. Além da investigação, exige também a preservação de “possíveis evidências materiais do crime de estupro”.

De acordo com carta assinada por mais de 350 organizações, a notificação do crime de estupro por médico/hospital “fere a autonomia da mulher ao impor a notificação à polícia como requisito para que um procedimento legal aconteça”.

“A rede de saúde é a principal porta de entrada para mulheres vítimas de violência sexual. É lá que elas vão buscar atendimento, é lá que elas irão fazer a profilaxia da gravidez, é um espaço muito mais acessado do que a delegacia. E temos que levar em consideração que a maior parte da violência sexual cometida no Brasil é cometida por pessoas conhecidas pelas vítimas”, explica Ruzzi.

A advogada explica que a exigência da investigação para a realização do aborto é mais um empecilho para que mulheres abusadas sexualmente, violentadas, corram atrás de um direito garantido por lei.

Além disso, Rizzo aponta que a cartilha considera marcos internacionais importantes, mas que foram citados trechos de acordo com o tom crítico da cartilha, como o Pacto de São José da Costa Rica e a Declaração de Consenso de Genebra.

Por exemplo, o chamado de Pacto de São José da Costa Rica (oficialmente conhecida como Convenção Americana sobre Direitos Humanos) diz que toda pessoa deve ter o direito à vida protegido por lei, “em geral, desde o momento da concepção”. Grupos mais conservadores usam isso de argumento para se posicionarem contra o aborto.

Por outro lado, o Ministério da Saúde esquece de documentos igualmente importantes.

“A gente tem alguns tratados mais específicos, alguns deles falam inclusive de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Entre eles, tem a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que basicamente é uma convenção de 79 que foi ratificada pelo Brasil, e o outro é a Convenção do Belém do Pará, que também é para o continente americano, e busca uma série de obrigações para combater e erradicar a violência contra a mulher”, explica.

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