Esquerda

A esquerda que sonha: as diferenças entre 2002 e 2022

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Entre 2002 e 2016, houve medidas importantes para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas reformas estruturais estiveram ausentes e os instrumentos do poder oligárquico permaneceram intactos. O Lula de 2022, porém, tem se comportado de modo distinto. Os atuais pontos debatidos vão muito além das mudanças vividas pelo Brasil até 2016

Imagem: Ricardo Stuckert

Antonio Martins, Outras palavras

No cenário político brasileiro – cada vez mais instável e, paradoxalmente, aberto à esperança –, está surgindo um elemento novo. Ele não explode nas manchetes, como as repetidas vociferações de Bolsonaro, o dramático desaparecimento na Amazônia, ou a constatação de que o número de famintos dobrou, em apenas dois anos. Mas tem, a longo prazo, importância maior.

Aqui e acolá, ainda que de maneira ainda embrionária e tímida, estão ressurgindo sintomas de um tipo especial de atividade, nos movimentos sociais. Já não se trata apenas de resistir às investidas contra os direitos sociais.

A reflexão sobre novos projetos de país está sendo retomada. E mais: Lula, o candidato com chances reais de vencer o bolsonarismo, parece em sintonia com o ensaio – ao contrário inclusive do que foi a tradição dos governos de esquerda, entre 2002 e 2016. Onde isso se dá? Por que meios? E – mais importante – por que é tão decisivo para vencer o fascismo e para as disputas muito duras que virão a partir de 2023?

Movimentos sociais ligados a pelo menos três temas estratégicos para o futuro do país estão amadurecendo projetos. O primeiro é a vasta rede que defende a transformação dos espaços urbanos. No último fim de semana (3 a 5/6), realizou-se em São Paulo, a Conferência Popular pelo Direito às Cidades.

Uma constelação de movimentos, que começa pelo BR Cidades e se estende ao MTST, à Central dos Movimentos Populares e a dezenas de outros grupos que lutam por moradia, encontram-se em diversos auditórios do centro. Participaram, enfrentando o frio, centenas de pessoas — dos ativistas majoritariamente negros que ocupam há décadas prédios e terrenos desaproveitados, a pensadores como Ermínia Maricato, Nabil Bonduki e Paolo Colosso.

Os pontos debatidos vão muito além das pequenas mudanças vividas pelo país até 2016. Fala-se em Reforma Urbana, em combate frontal à especulação imobiliária, em enfrentamento do déficit de moradias habitações dignas no centro das cidades, em garantia de transporte público e luta contra a ditadura do automóvel e em muito mais.

Outro processo de mobilização, também de intensidade crescente, está fermentando entre os movimentos que lutam pelo SUS – tão emblemático de outro país possível. Uma Conferência Nacional de Saúde, denominada “Livre, Popular e Democrática”, está marcada para 5 de agosto. É organizada pela Frente pela Vida, outra constelação nacional de entidades. Tem caráter descentralizado e autônomo. Qualquer ativista pode convocar, em seu local de trabalho, estudo, docência ou pesquisa, um evento preparatório, para debater o vasto temário proposto. Os encontros estão se multiplicando.

E, também, aqui, as ambições transformadoras vão bem além do que fizeram os primeiros governos de esquerda. Debatem-se novos parâmetros para financiamento da Saúde Pública – ou seja, reverter o “subfinanciamento” que foi agravado por Temer e Bolsonaro, mas vem desde a Constituição de 1988. Fala-se em “SUS 100% público”, que significa reverter gradualmente a privatização interna do sistema. Propõe-se enfrentar os “vazios assistenciais”, humanizar o atendimento, incorporar a Telemedicina e a Medicina de Dados, hoje cobiçadas pelos planos de Saúde. Desenvolver um Complexo Econômico e Industrial da Saúde, para reconstruir a indústria farmacêutica brasileira e criar a de equipamentos médicos. Em síntese, vislumbra-se não apenas defender o SUS – mas ampliá-lo e fortalecê-lo o SUS, a ponto de enfrentar a medicina de negócios.

Seria exaustivo reportar todas as iniciativas. Vale lembrar que começa a ganhar força o questionamento do Agronegócio. Há poucos dias, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) deflagrou um processo de debate e mobilização nacional que pretende questionar, nas eleições, o atual modelo agrícola. A ideia é chamar atenção para seu caráter predatório da natureza, hostil ao trabalho, hiperconcentrador de riquezas, produtor de alimentos empesteados de venenos. Além disso, é claro, propor como alternativa a agricultura camponesa e seu refinamento agroecológico.

Questão essencial: qual a posição de Lula diante destes movimentos?

Até o momento, ele os tem estimulado claramente, o que – vale notar – destoa da experiência dos governos de esquerda. Entre 2002 e 2016, houve medidas importantes para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas as reformas estruturais estiveram ausentes. Mais: adotou-se a opção de governar estritamente sob a institucionalidade ultraconservadora do país – sem jamais tensioná-la de modo efetivo. Não se estimularam pressões ao Congresso, ao Judiciário, à mídia hegemônica. Todos estes instrumentos do poder oligárquico permaneceram intactos. Como resultado, a injustiça extrema da estrutura social brasileira também foi preservada.

O Lula de 2022, porém, tem se comportado de modo distinto. Estimulou pessoalmente os processos de conferências populares. Parte de seus falas tem frisado de maneira explícita a necessidade de governar para as maiorias, de enfrentar as desigualdades, de deixar de atender apenas aos interesses das elites. Em certos momentos, chegou a dizer que os governantes precisam ser cobrados, para que não se acostumem a dirigir distantes das dores da maioria. Esta postura se manterá? É impossível dizer hoje, inclusive porque os processos sociais têm muito mais força que os indivíduos. A vasta frente que está se formando contra o fascismo reúne interesses contraditórios. Parte de seus integrantes buscará se apoiar nas instituições para manter privilégios e frear transformações sociais efetivas.

Por isso, a autonomia e a recriação de um horizonte utópico são hoje fatores chave da disputa pelo futuro do país. O sentido de um possível governo Lula não será definido nem pela vontade do presidente, nem dos partidos que o apoiam. Será a resultante de um conjunto de pressões sociais distintas e muitas vezes contraditórias – algumas libertadoras, outras claramente retrógradas e coloniais. E a melhor maneira de alcançar um governo avançado não será nem nutrir esperanças cândidas, nem praticar a crítica ácida – mas empurrá-lo constantemente para frente.

E esta ação autônoma precisa de sonhos, de projeções de um futuro político comum. Eles são divagações idealistas mas, ao contrário, a antítese do projeto neoliberal. Negam o dogma, tão comum nas últimas décadas, segundo o qual as sociedades e os governos devem limitar-se a obedecer a disciplina dos mercados. Sugerem que há meios para enxergar a realidade e para transformá-la por meio da mobilização social e do confronto contra os interesses hoje dominantes. Por anos, estiveram ausentes, já que a única ação possível era defender as conquistas do passado. Começam a reaparecer, na forma de elementos para um novo projeto de país.

Serão essenciais, no cenário muito complexo que se abrirá em 2023, em caso de uma vitória democrática. O país está mais regredido, empobrecido e desigual do que em qualquer momento nas últimas décadas. Os interesses oligárquicos, fortalecidos, resistirão a mudanças. As experiências anteriores de governos de esquerda são insuficientes para enfrentar os novos desafios. É preciso algo novo. E os projetos políticos que começam a se esboçar de forma autônoma podem ser a chave para a reconstrução.

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