Racismo não

Branquitude entende a frase ‘fogo nos racistas’ de forma literal

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Fogo nos racistas: ainda que muitos acreditem, ou por desconhecimento ou por má fé, que a frase é literal, é preciso compreender a expressão para além do seu significado denotativo

Ato pela morte do congolês Moïse

Jeferson Tenório, em seu blog

Pululam nas redes sociais, nos muros das ruas ou em memes a expressão “Fogo nos racistas” o que tem gerado argumentos equivocados do que de fato significa a frase. Ainda que muitos acreditem, ou por desconhecimento ou por má fé, que a frase é literal, é preciso compreender a expressão para além do seu significado denotativo. Talvez precisemos mais de metáforas do que imaginamos. A metáfora nos salvará da barbárie e da ignorância.

Antes de qualquer reflexão mais aprofundada sobre o assunto, talvez eu precise ser mais direto. Pois embora a violência racial nos atinja todos os dias, ainda é preciso que se diga: fiquem tranquilos, ninguém vai sair por aí colocando gasolina no corpo de ninguém e depois acender um fósforo. Isto não é uma prática de quem defende direitos pela igualdade racial e social, pois colocar fogo em moradores de rua e indígenas, como já aconteceu, é uma prática branca, classista e racista. O enfrentamento contra o racismo não passa pelos mesmos métodos colonialistas a que fomos e somos submetidos.

A frase “fogo nos racistas” ganhou repercussão a partir da música “Olho de tigre” do Rapper Djonga. No início do ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a exclusão de uma postagem com o termo “fogo nos racistas” no Facebook. A postagem se referia ao caso relatado por uma enfermeira negra cuja irmã havia sofrido uma agressão racista em uma loja da cidade de Mogi Guaçu, à 172 km da capital paulista.

No último sábado (18), Djonga trouxe novamente a discussão para o centro. Ao se apresentar no festival “Cena 2K22”, em São Paulo, o rapper colocou em seu show um homem em chamas no palco. A performance artística tem relação com a letra da música “Olho de tigre”. A imagem é forte e impacta porque vemos ali a materialização de um imaginário da branquitude que lê “fogo nos racistas” de modo literal.

Na verdade, a vigilância em torno dessas expressões, miram em outro alvo: nas organizações dos movimentos negros, pois essa mesma organização causa grande apreensão e angústia na branquitude. A preocupação de que uma consciência racial mais ampla e massiva, por parte da população negra, possa provocar, efetivamente, revoluções e mudanças estruturais. Assim, a reação de proibir, por exemplo, o uso de determinadas expressões passa justamente por esse receio da tomada de consciência coletiva negra.

A expressão “fogo nos racistas”, para que não haja dúvidas é, na verdade, um pedido de basta. É um modo de dizer que já não se aceita condutas racistas. “Fogo nos racistas” é um risco no chão dizendo: daqui você não passa. Além disso, é preciso entender que expressões como: “Poder para o povo negro”, “Pretos no topo”, “Nossos passos vêm de longe” ou a própria frase “fogo nos racistas” servem para dar uma sensação de unidade às lutas contra o racismo. A leitura literal do que deve ser encarado enquanto metáfora produz observações óbvias e desnecessárias como: “Ah, vocês dizem que a branquitude é culpada pelo racismo, mas nem todo o branco é racista”. Dai-nos paciência.

Entender essas expressões de modo literal é também mais uma estratégia de criminalizar as condutas antirracistas. O malabarismo argumentativo da branquitude que, muitas vezes, chega no delírio do chamado racismo reverso está, na verdade, à serviço da manutenção dessa estrutura opressora. O medo da revolta negra sempre foi um fantasma para branquitude. O sono dos sinhozinhos e sinhazinhas sempre foi perturbado pelo receio de vingança dos escravizados. Esse imaginário ainda perdura numa certa psique social branca. Não é à toa que os mecanismos de aniquilação e encarceramento no Brasil incidem majoritariamente na população negra.

Penso no livro “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon em que o autor martinicano questiona como não se utilizar de uma postura bélica estando inserido num contexto de violência colonialista? Assim, podemos atualizar a questão de Fanon para hoje: como não utilizar a frase “fogo nos racistas” quando estamos sob ataque permanente do racismo?

Quando reforço que estamos tratando essas expressões como metáfora, isso não significa que elas perdem sua força prática, no que diz respeito à luta antirracista. Muito pelo contrário, pois elas imprimem e impõem limites para essas agressões cotidianas que assolam a população negra.

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