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Ideologia, interpretação e narrativas: forja de realidades

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Um dos ensaios mais significativos de Susan Sontag é Contra a Interpretação, publicado pela primeira vez em 1964. Seus apontamentos contra a crítica da ideologia foi amenizada pelos teóricos que amortizaram a contundência que ela denunciou. Afinal, reconhecer sua impostura seria aniquilar qualquer possibilidade crítica dentro do mundo da alta cultura, justamente o lugar privilegiado da produção ideológica que nos é oferecida como crítica.

Todo livro é ideologia, toda palavra escrita o é, inclusive o ensaio da autora e esse aqui, toda obra de arte também e enfim toda cultura ocidental produzida depois dos anos 1500 (a galáxia Gutenberg com a invenção da prensa mecânica, a centralização da Igreja, o humanismo e a soberania do humano, criação do Estado), lugar da ideologia e impondo a percepção de um mundo e uma forma de vida.

A história que lançou para trás suas garras ideológicas até os confins do tempo e do espaço igualmente emite os sinais da ideologia, construindo a naturalização da desigualdade.
Minha iniciação com a interpretação aconteceu dentro da universidade, quando produzia meu doutoramento. Cursei grande parte da minha formação acadêmica numa instituição em que o departamento a que pertencia era majoritariamente marxista.

O marxismo é uma arquitetura teórica relativamente simples em que qualquer fenômeno pode ser enquadrado nesse móvel doméstico que se bem formulado explica toda a história e todas as sociedades.

Sempre achei isso indigno, como se a inteligência não fosse necessária para a compreensão da história, já que tudo pode ser revelado por essa teoria acabada.

Na fase do doutoramento, essa dúvida só foi agudizada e decidi fazer um curso de hermenêutica, não porque soubesse o que era, mas porque os professores marxistas detestavam as professoras dessa área e condenavam os estudantes que tomavam esse caminho como hereges incorrigíveis.

Confesso que tenho grande apreço pela heresia e me inscrevi. Havia uma aura de superioridade dessas professoras, uma espécie de elite intelectual que ofendia os marxistas. Mas não consegui frequentar duas aulas até o final.

Autores como Gadamer e Koseleck eram apresentados como os fundamentos do curso e eram absolutamente incompreensíveis.

Não sou um homem fácil de enganar. Entendi duas coisas que me auxiliaram na jornada que começava: a primeira, que a sofisticação intelectual é parte da arrogância do ambiente acadêmico; e a segunda, que a falácia da interpretação e, portanto, da hermenêutica carrega consigo um enorme buraco de possibilidades: se a interpretação é válida para esse ambiente, então qualquer interpretação é válida e não apenas essa que carece que conhecimentos arcanos inacessíveis a mente inferiores como a minha.

Todo o meu trabalho a partir daí foi ancorado por esse princípio simples, pois se interpretar é válido, então valida todas as formas de ver um fenômeno, sem a necessidade dos critérios superiores e indescritíveis da hermenêutica.

Isso serviu para trabalhos acadêmicos, mas principalmente para aulas. Usava o método dialógico que era extremamente facilitado para estudantes que não tinham familiaridade com textos, mas que emitiam experiência de vida rica diante de estudantes que haviam cursado escolas de elite, mas cuja experiência de vida era para eles mesmos indigna de ser partilhada nas aulas, o que obviamente é apenas mais um preconceito, comportamento crítico daqueles que pertencentes à classe média sentem que é uma classe meramente de amortecimento dos conflitos sociais.

Procurei e encontrei um filósofo que validava minha jornada, Jean Baudrillard:

Sou um dissidente da verdade.
Não creio na ideia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável.
Desenvolvo uma teoria irônica que tem por fim formular hipóteses. Estas podem ajudar a revelar aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é mais importante que o discurso linear.
Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um fotógrafo.”

Sua percepção da interpretação é forte e contundente e me apeguei a ela sem pudor, pois sentia que me colocava, ironicamente, no patamar superior da instituição acadêmica.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Nunca me confrontaram. Realmente, a chancela da hermenêutica causa nos servidores voluntários do mundo da pretensa alta cultura um temor que não conseguem ocultar.

Essa serventia me valeu por muito tempo, mas o tempo é um treco e em suas voltas não lineares nos colocam diante daquilo que acreditamos e cobra aprofundamento.

Quando escavamos esse universo diminuto da lógica acadêmica não ignoramos que ela apenas contempla de modo mais ou menos intenso a própria lógica colonial. O conceito de império cognitivo como sendo a base colonizadora em algum momento me atravessou como uma epifania.

Seu significado maior, para mim, foi a compreensão que nossa forma de apreender o mundo e, portanto, nossa própria compreensão da realidade é em si colonizadora. Aprendemos a ver o mundo pela lente colonizadora, ou seja, pela racionalidade construída no projeto colonizador e que também nutriu em nós uma forma especial de lidar com a realidade: o pensamento.

Essa lente que nos separa da vida tem uma espessura singular e nada variável. “Penso, logo existo” é uma pista de sua inaugural deformidade, pois o pensamento antecipa e media nossa relação com o mundo e a vida. E o faz de modo bem específico. Tomemos o ensaio de Sontag como exemplo dessa genealogia.

Embora se refira especificamente à interpretação das obras de arte, de fato sua análise me serve para compreender o próprio funcionamento de todo império cognitivo que instalou em nós por meio de diversas instituições a própria visão de mundo que marca a colonização eurocêntrica e uniformiza toda percepção, independente das especificidades nacionais, regionais ou pessoais.

Segundo ela, a modernidade criou uma interpretação que provoca a domesticação e reduz a liberdade de uma reação subjetiva à obra. A “atualização de todas as obras de arte” atende aos interesses modernos aplicando leituras alegóricas ao que seria em si irreconhecível.

Ao invés disso, a conexão direta entre a obra e a sensibilidade deveria eliminar o observador, ou seja, aquele que emite uma determinada narrativa como metodologia de redução exercida pelo pensamento para que a compreensão emerja.

Passei a tecer uma crítica do pensamento como redutor de percepção quando comecei a contemplar. É um exercício de fusão entre aquele que observa e, portanto, julga e avalia e o que está diante de si. Com o tempo percebi que a observação sem a presença do observador silencia o pensamento e opera uma comunhão sem subjetivação. A integração se torna completa, eliminando a lente colonial compreensiva e até então aparentemente necessária.

Observar até que o observador se funda com a paisagem, além de ser um método muito confortável de meditação sem esforço, nos oferece uma infinita e absoluta sensação de integração com as forças da vida, eliminando as forças da morte nutridas pelo pensamento. Preconceitos, determinismos, valores, julgamentos, certezas e verdades desaparecem completamente desse alegado dispositivo de superioridade que chamamos racionalidade e seus corolários naturalizados que denominamos de pensamento ocidental.

Como o pensamento foi criado pela forma peculiar de cultura colonizadora e alimentado com os nutrientes da desigualdade, ele próprio é incapaz de exercer qualquer atividade crítica e precisa ser silenciado para que a percepção escape de sua prisão cartesiana da razão.

A interpretação perde a sensibilidade e destrói a experiência vital. Todas as leituras sobre um pretenso real são falaciosas e complicadas e degradam nossa ligação com a vida.

A contemplação, ao eliminar o observador, nos licencia a uma experiência que, por falta de palavra melhor, nos liga a integrações mais primitivas e sensuais, quase mágicas, destruindo as camadas espessas de hermenêuticas que cercam aquilo que nutrimos como mimese e que no fundo estão tomadas por teorias diversas, marxistas, freudianas, baudrillardianas, pois a frase acima do filósofo francês aciona o recurso da mimese, da fotografia como um resgate da tão desejada realidade tal e qual, como qualquer filosofia imagina conceber em sua busca pela verdade.

Com a colonização, os sentidos físicos e intuitivos foram entorpecidos e aniquilados pela produção de significados e interpretação complexa, nos convidando a perder a simples apreciação da vida ao separar forma e conteúdo. A integração de tudo que vive é plenamente sensorial e dispensa qualquer recurso narrativo para se realizar.

A única possibilidade de exercermos uma crítica de toda colonização reside nesse artifício elementar: silenciar o pensamento e fazer desaparecer o observador, como demonstra o mundo quântico, em que tudo que vive é teu próximo e a desigualdade é uma impossibilidade física, não mais que uma ideologia.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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