Educação

Criança brasileira é agredida por funcionária de escola em Portugal

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"Me desesperei quando vi a blusa do meu filho manchada de sangue". Menino de 7 anos tem diagnóstico inconclusivo para autismo e foi agredido por funcionária de escola na frente de outras crianças. Instituição de ensino teria tentado omitir detalhes do crime

Maria Venâncio com filho agredido (Foto: Sofia Cristino/JN)

Natália Eiras, TAB

A massoterapeuta brasileira Maria Venâncio denunciou à polícia que seu filho, T., de sete anos, foi agredido por uma funcionária da escola pública onde estuda, em Portugal.

Na tarde de 25 de janeiro, a coordenadora da escola pública telefonou para Maria Venâncio, dizendo que havia ocorrido um desentendimento entre T. e a auxiliar de ensino da instituição.

O menino havia levado, nas palavras dos responsáveis pela escola, uma “bofetada” no rosto de uma das trabalhadoras responsáveis por cuidar das crianças no horário do almoço da escola. A coordenadora dizia que estava tudo sob controle naquele momento, mas que gostaria de conversar com a mãe no dia seguinte.

Há três anos, o menino começou a apresentar pouco desenvolvimento da fala e compreensão. Desde então, T. passa por uma investigação médica que pode levar ao diagnóstico de transtorno do espectro autista, condição multifatorial de que não se conhecem as causas.

Em crianças, os sinais de autismo incluem dificuldade de manter contato visual por mais de dois segundos, não atender pelo próprio nome, ser muito preso às rotinas e não se comunicar normalmente pela fala.

Naquela terça-feira, T. e Maria Venâncio tiveram uma manhã completamente normal e rotineira. De bom humor, o menino perguntou se eram “os dois dias” – como ele chama os finais de semana, os dois dias em que ele fica em casa com os pais. A mãe disse que não; aquele era “um dos cinco dias”, quando ele precisa ir à escola.

Por telefone, a coordenadora da escola não deu muitos detalhes sobre o ocorrido. “Achei que a situação estava contornada e que poderia ir até a escola no dia seguinte. Mas, após desligar o telefone, tive a sensação de que algo estava errado”, disse Maria. Pouco tempo depois da ligação, a massoterapeuta contatou seu ex-companheiro e pai de T., Pedro Cabral de Souza Liuzzi, e, juntos, decidiram ir à escola.

“Bateu, levou!”

Segundo Maria, a diretoria pediu desculpas porque havia acontecido um descontrole de uma das profissionais. Eles narraram: na hora do almoço, T. estava se recusando a comer. A auxiliar tentou forçá-lo a se alimentar. A situação ficou estressante demais para o menino, que perdeu o controle emocional e chutou a trabalhadora. Ela revidou com um tapa no rosto do menino, na frente de todas as crianças.

Uma das características do espectro do autismo é a seletividade alimentar. “Meu filho só aceita sopa facilmente”, explica a massoterapeuta. A escola saberia disso, já que T. fez o jardim de infância no mesmo agrupamento escolar e é acompanhado pela mesma equipe pedagógica. “Sempre aviso que, caso ele não coma no almoço, eu consigo suprir essa necessidade quando ele chega em casa. Sento com ele e fico uma hora na mesa.”

Depois de ficar um ano a mais no jardim de infância, o garoto começou, em setembro de 2021, o primeiro ano do primeiro ciclo – equivalente à primeira série do ensino fundamental. “Ele está se desenvolvendo pedagogicamente super bem e vinha em uma fase muito boa, sem grandes crises de descontrole emocional”, fala a mãe.

Ironicamente, Maria Venâncio decidiu mudar para Portugal por acreditar que seu filho seria mais bem tratado no país. Ela morava no Rio de Janeiro (RJ), no bairro de Rio Comprido, com T., o ex-companheiro Pedro Cabral de Souza Liuzzi, e a filha mais velha Nina, 19, quando o menino começou a fazer psicoterapia.

Na mesma época, em 2019, surgiu a ideia de trocar a capital carioca pela região metropolitana de Lisboa. “Na nossa cabeça, no Brasil seria tudo mais difícil: o sistema de ensino público é muito precário e teríamos de pagar uma escola privada para o T.. Também tinha a questão da saúde: tínhamos de pagar um plano de saúde que, para atender a todas as necessidades de T., ficava muito caro.

Decidimos vir para cá porque achamos que seria melhor por acreditarmos que a escola pública seria mais inclusiva, além do sistema de saúde público ser mais eficiente”, afirma a massoterapeuta.

Porém, naquela reunião, Pedro e Maria estavam muito longe de sentirem que seu filho estava sendo respeitado. “Eles disseram que a auxiliar já havia sido advertida e transferida para outra escola. Isso aumentou a minha revolta: aquela mulher agrediu uma criança, ela não deveria estar em contato com outras”, narra a brasileira.

Após a diretoria terminar o relato, Maria disse que gostaria de registrar uma ocorrência para a Polícia de Segurança Pública.

Por volta das 17h40, a polícia já havia recolhido os relatos. T. foi levado até eles para ir embora com os pais. O rosto não tinha marcas. Por causa do frio, a criança usava uma blusa pesada por cima do moletom com o qual passou o dia.

Na calçada da escola, uma outra mãe abordou Maria, perguntando se a família estava ali por causa da bofetada. A massoterapeuta ficou espantada em como as notícias rodam por Odivelas. “A outra mãe comentou, no entanto, que o filho, que estava no refeitório junto com T., tinha chegado em casa muito assustado porque, após o tapa, o menino havia sangrado muito pelo nariz. Foi levado para fora e depois voltou limpo”, narra.

Os pais gelaram. Ninguém havia mencionado que T. havia sangrado. Maria e Pedro checaram a roupa do garoto. Ao tirarem a blusa pesada, encontraram o moletom roxo de T. com manchas de sangue na manga e perto da gola. Fizeram fotos e vídeos do menino ainda vestido com a roupa manchada. O material foi reunido em um e-mail e enviado para a diretoria da escola.

Maria Venâncio decidiu, então, expor a situação nas redes sociais. A história viralizou entre a comunidade brasileira em Portugal e a massoterapeuta começou a receber relatos de outras mães cujos filhos levaram tapas e beliscões de profissionais escolares por “não estudarem direito” ou por não comerem nas refeições.

“Quando a criança relatou para mãe, ela usou a seguinte frase: ‘Com a R. é assim: bateu, levou'”, diz a massoterapeuta. “Se um menino de 8 anos falou assim, não é a primeira vez que ele vê essa cena. Pode não ter sido nessa gravidade, mas com certeza deve ter acontecido anteriormente.”

No dia seguinte, a coordenadora voltou a receber a brasileira. A responsável alegou que não sabia que T. havia sangrado. “Quando recebeu o e-mail, ela teria chamado as profissionais e elas confirmaram que houve sangramento, mas que, como limparam, não sentiram necessidade de comunicar”, diz Maria.

“Não repassaram isso como se fosse algo muito normal, uma criança sangrar após levar um tapa de um adulto. Para mim, um crime aconteceu e a cena foi alterada.”

Violência contra brasileiros

Luiza, uma das mães que publicaram relatos na comunidade online de brasileiros em Portugal, conta que morava em Sintra, área metropolitana de Lisboa, com o marido e a filha de seis anos. Quando a menina entrou na escola, em setembro de 2020, começou a perceber que a criança chegava triste e, em um certo momento, puxou conversa. “Ela me contou que a ‘tia’ a forçava a tomar a refeição, muitas vezes quente. Minha filha chegava em casa com a boca machucada.”

Além da alimentação forçada, a criança sofria bullying de outras crianças, aparecia com ferimentos e, em um caso mais extremo, teve a cabeça enfiada em um vaso sanitário. “Os outros alunos a chamavam de ‘a brasileira’. E as auxiliares pareciam proteger as crianças portuguesas. Meu mundo caiu. Fiquei em depressão, não conseguia mais trabalhar. Por isso, decidi voltar para o Brasil”, narra. A família retornou para Jacaraípe (ES) em abril de 2021.

Corrigir o sistema

Susana Santos, vereadora da educação da Câmara Municipal de Odivelas, diz que a situação com T. aconteceu por causa da pandemia de covid-19. Em Portugal, auxiliares escolares são funcionários diretos da Câmara Municipal, e respondem diretamente ao órgão.

“As pessoas que costumavam estar com o aluno não estavam no dia. No autismo, a alteração das rotinas pode causar esse tipo de estresse emocional”, afirmou a vereadora, em entrevista por telefone.

De acordo com Susana Santos, a auxiliar educacional também foi atendida pelo hospital após a situação. Questionada sobre a razão do atendimento, a vereadora não soube explicar. “Vamos receber um relatório do seguro-saúde ainda essa semana”, afirma. A auxiliar não teria sido, ainda, transferida para outra unidade educacional, mas estaria afastada por atestado médico.

“Queremos dar uma garantia: temos 3 mil alunos estrangeiros e muito orgulho de tê-los conosco. Queremos tranquilizar a comunidade brasileira, suprir as dificuldades naturais e garantir que o que aconteceu nada tem a ver com a nacionalidade do menino”, disse a vereadora.

Susana Santos afirmou, também, que o caso está sendo investigado pelo agrupamento escolar em um processo disciplinar e administrativo. “Compreendo completamente que a família esteja em sofrimento, indignada. Serão tomadas todas as medidas que sejam adequadas e necessárias.” Na quarta-feira (2), o jornal Público reportou que a funcionária fora suspensa após a agressão.

Maria Venâncio rechaça o comunicado da vereadora. “Meu filho nunca teve uma auxiliar exclusiva. R.* conhecia o T. e sabia da rotina dele”, diz a brasileira, que oficializou a queixa-crime na esquadra da Polícia de Segurança Pública. Ela vai acionar advogados e entrar com processos civil, criminal e administrativo. “O Estado tem que se responsabilizar”, fala a brasileira.

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Mesmo com o ocorrido, no entanto, ela não vai tirar o filho da escola Manuel Coco. “Ele é uma criança que precisa de vínculos e raízes emocionais. O problema não é o meu filho, é o sistema que tem que se corrigir. Mas um crime aconteceu dentro do ambiente escolar e eu quero justiça.”