Mídia desonesta

Como o ‘pânico satânico’ tem atrapalhado investigações desde a década de 1970

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A afirmação de um delegado de que Lázaro Barbosa seria "satanista" ressuscita um enredo bastante conhecido no Brasil, que liga mortes violentas a sacrifícios e cultos. "Agentes do estado e jornalistas precisam aprender sobre Pânico Satânico e serem mais céticos. Precisamos entrar no século XXI em algum momento", alerta especialista

Lázaro Barbosa

Leonardo Neiva, Portal TAB

A afirmação de um delegado de que o “matador de Brasília” seria “satanista” levanta um debate polêmico. Lázaro Barbosa, 32, é suspeito de matar quatro pessoas da mesma família em Ceilândia (DF) e tem sido perseguido há mais de uma semana pela polícia de Goiás. Relatos sobre supostos rituais e declarações de que ele estaria “possuído” assustam a população rural do Planalto Central e repetem um enredo bastante conhecido no país, que liga mortes violentas a sacrifícios e cultos.

A situação de Lázaro evoca, por exemplo, o que é descrito na série documental “O Caso Evandro”, recentemente lançada pelo Globoplay. O documentário trata dos acontecimentos que se seguiram ao assassinato de Evandro Caetano, de seis anos, na cidade de Guaratuba (PR) em 1992. A descrição, no entanto, pode se aplicar a vários outros casos ocorridos no exterior e no Brasil ao longo de décadas.

Há inclusive um termo para definir esse tipo de fenômeno: pânico satânico.

O que é?

O pânico satânico tem origem na expressão “pânico moral”, criada pelo sociólogo e criminologista britânico Stanley Cohen (1942-2013) no livro “Folk Devils and Moral Panics” (demônios folclóricos e pânico moral, em tradução livre). Os “demônios” apresentados no título seriam pessoas, figuras ou objetos considerados pela opinião pública como a razão de todos os males, explica o sociólogo Francis Moraes de Almeida.

Mas o que é o “pânico moral”?

É a crença — quase sempre com pouca base na realidade — em um grande mal que ameaça o bem-estar da sociedade. “Quando surge um tópico que traz ansiedade social, identifica-se um bode expiatório. Sua participação no problema é então apresentada de modo desproporcional, recebendo uma atenção excessiva em relação à ameaça que ele representa”, explica Almeida, professor de ciências sociais na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). O pânico satânico é um tipo específico de pânico moral, centrado na crença em rituais e cultos satanistas e na certeza de que o Mal, encarnado, está por trás de algum crime. “Geralmente está relacionado a relatos de abusos sexuais a crianças por supostos cultos satânicos. Morte de crianças é uma variação”, afirmou no Twitter o jornalista Ivan Mizanzuk, criador do podcast “Projeto Humanos”, cuja temporada de maior sucesso investigou o caso Evandro (Mizanzuk também participa da produção da série da Globoplay).

O que aconteceu no Caso Evandro?

Após a morte da criança em circunstâncias misteriosas, os olhos da comunidade — e também da imprensa e da própria polícia — se voltaram para um grupo de pessoas de hábitos considerados estranhos e com práticas religiosas fora do usual. Rapidamente, com pouca ou nenhuma evidência concreta, chegou-se à conclusão de que o crime fora cometido em um ritual promovido por um culto satânico local. Apesar de alguns dos exemplos mais notórios de pânico satânico terem acontecido nos EUA, o caso, Evandro, conhecido popularmente como o das “Bruxas de Guaratuba”, ganhou notoriedade. “São sempre casos muito graves, porque geram acusações falsas e acabam encobrindo os reais criminosos”, diz Rafaela Barbieri, doutoranda em história pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e especialista em religiosidade e pânico satânico.

Quais as origens desse medo?

Casos de pânico satânico raramente são isolados, diz Almeida. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse medo foi sendo construído ao longo dos anos 1960 e 1970, quando famílias conservadoras achavam que estavam perdendo seus filhos para a contracultura e movimentos religiosos alternativos, como Hare Krishna. “Muitos pensavam que os jovens estavam sofrendo lavagem cerebral, esquecendo Jesus e negando as tradições cristãs, afastando-se dos valores familiares”, afirma Francis Moraes de Almeida.

Onde entra o satanismo?

A crença na existência de cultos satânicos pode ser rastreada até uma série de relatos de morte de gado numa pequena cidade americana em 1973, conta Barbieri. De acordo com essas histórias, os animais apareciam com seu sangue drenado e vísceras cortadas ou devoradas. Na época, pesquisadores chegaram a analisar esses casos e concluíram que as mortes tinham causas naturais. O sangue simplesmente coagulava, e as partes moles eram devoradas por animais de pequeno porte. Ainda assim, as histórias persistiram no imaginário popular, unindo-se a relatos de descobertas de altares satânicos. Criou-se, portanto, a visão de que satanistas estavam dedicando as partes cortadas dos animais ao diabo. “Essas histórias começam a aparecer nos jornais e se cria um campo de credibilidade em torno da existência de satanistas, que seriam pessoas criminosas”, diz Almeida.

Existe ou não existe?

Barbieri lembra que o satanismo existiu de fato, tanto em grupos de criminosos como em movimentos como a Church of Satan (igreja de satã), criada em 1966. “Muitos desses movimentos não viam satã como o mal encarnado, e sim um símbolo de rebeldia, um anti-herói.” Nos anos 1980, considerado o ápice do pânico satânico nos EUA, o fenômeno teria sido estimulado pelo aumento do conservadorismo, simbolizado pela eleição do presidente Ronald Reagan, assim como a ascensão de grupos religiosos fundamentalistas e a divulgação de livros e programas de TV que alertavam para a ameaça.

Casos nos EUA

Nos EUA, segundo a historiadora, os primeiros casos de pânico satânico envolveram denúncias pouco confiáveis de crianças sobre abusos. Em 1983, sete trabalhadores da escola McMartin, em Los Angeles, foram acusados de envolver 360 crianças em rituais de sacrifício. O julgamento mais longo e caro dos EUA até então terminou somente em 1990, sem nenhuma condenação. Em cidades menores, também começaram a surgir rumores sobre satanistas que sequestravam virgens loiras de olhos azuis. Nos EUA, segundo o historiador religioso Ruben Van Luijk, autor do livro “Children of Lucifer” (filhos de Lúcifer), a ideia de conspiração satanista envolvia questões como abuso infantil organizado, pornografia, música popular, satanismo adolescente, grafite e lendas sobrenaturais.

E no Brasil?

Apesar de ser um dos mais emblemáticos, o caso Evandro não foi o primeiro do tipo no país. Segundo Almeida, muitas vezes o pânico satânico foi disseminado por grupos evangélicos pentecostais, a partir dos anos 1990, que faziam confundir estátuas de divindades africanas com representações do demônio.

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O caso da morte da jovem estudante Aline Soares em Ouro Preto (MG), em 2001, é emblemático. O corpo da vítima foi encontrado com 17 facadas e sinais de violência sexual. O que despertou a imaginação da mídia e dos investigadores, no entanto, foi o fato de ter sido colocado sobre um túmulo e disposto em forma de cruz. O crime foi ligado a um ritual satânico envolvendo o jogo de RPG “Vampiro: A Máscara”, sob a alegação de que Aline teria sido morta após ser derrotada em uma partida. “Não sei como é possível perder um jogo de RPG e como foram capazes de jogar em um cemitério, sem nenhuma fonte de luz. Mas a história colou na época”, afirma o sociólogo. O jogo chegou a ser temporariamente proibido no país. Em 2009, porém, os jovens acusados do crime foram absolvidos por falta de provas.

Mas, afinal, o caso de Lázaro configura pânico satânico?

Segundo Almeida, dependendo do alcance que o caso venha a ganhar, pode entrar na definição. As informações concretas sobre os crimes de Lázaro ainda são pouco conclusivas. “Minha impressão é de que a história está muito mal contada. Só há duas fotos e uma frase de um delegado dizendo que o sujeito é um ‘conhecido satanista’. Conhecido por quem?” Nesta quinta-feira (17), a esposa de Lázaro afirmou que ele tem “muita fé em Deus” e que “pregava a palavra de Deus quando estava em um presídio”. Nas redes sociais, internautas apontaram como preconceituosa a fala do delegado ligando objetos encontrados na casa de Lázaro a rituais satânicos. Entre outros objetos, as imagens divulgadas mostram um assentamento para Exu, uma representação do orixá no mundo material. Exu é um orixá cultuado em religiões de matriz africana, frequentemente associado ao demônio por religiões cristãs. Barbieri lembra que houve intolerância religiosa no caso Evandro, quando um terreiro foi acusado de praticar magia negra. “É preciso tomar cuidado. Orixás são uma coisa e divindades católicas são outra. Exu não é o diabo”, afirma.