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Samuel Delany: polímata, escritor negro, gay, disléxico

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Num tempo de muitas resistências que tanto dificultam o caminho para a reumanização da vida, passado o processo todo do declínio humano, que clamar pelos seres faróis, desses que a chama anda obnubilada, é também uma urgência.
Nesse tempo de escassez de humanidade, que justamente se confunde com a mais ampla soberania do ser humano, em que ele parece acreditar que pode tudo, que reina sobre tudo, que paira acima de todos, precisamos de socorro e inspiração, pois justamente o que falta a esses humanos é imaginação, tão saturados estão do cimento da razão e das tormentas do pensamento único.
No dia em que nasceu, em 1 de abril de 1942, as Filipinas, Indochina e Cingapura caem sob domínio japonês. A Alemanha nazista e seus parceiros do Eixo declaram guerra aos Estados Unidos. Os britânicos bombardeiam a cidade de Köln, ou Colônia, trazendo a guerra para dentro do território alemão pela primeira vez, iria marcar seus primeiros livros de ficção científica.
Nascido numa família que já tinha feito história, como suas tias Sadie e Bessie Delany, pioneiras do direito civil, e seu avô, Henry Beard Delany, o primeiro pastor negro da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, Samuel Delany, um dos últimos polímatas ainda vivo, começou a escrever muito cedo e antes dos 27 anos já havia publicado os fundamentos de um tipo de ficção especulativa que o destacaria não só dos de sua geração, mas como aquele que inauguraria uma forma de ver a colonização que ainda hoje carece de ser entendida.
No documentário de Fred Barney Taylor de 2007, The Polymath, or The Life and Opinions of Samuel R. Delany, Gentleman, uma retrospectiva da vida do autor e crítico literário, Samuel relembra toda sua vida, relatando histórias que viveu ao longo dos anos, como ser negro no final dos anos 40 e 50 em Nova York, a vida no Harlem, a experiência de crescer como gay e ter uma vida promíscua enquanto escrevia os seus primeiros livros.
Contemporâneo de Tony Morrison, Delany partilha da mesma natureza irredutível a juízos e julgamentos.
Como um polímata, encontrou na ficção científica o universo aberto para transigir sua imaginação poderosa e foi nesses universos que a linguagem se mostrou mais desafiadora.
Contemporâneo de Chinua Achebe, Abdias Nascimento, Lelia Gonzales, Carlos Moore, Delany está comprometido com uma escolha que é a mesma que essa geração, como que tocada por uma bolha memética, também partilhou: a cor da pele não pode ser impedimento a nenhum movimento de expressão. E em suas lutas, uma recusa peremptória de qualquer vestígio de vitimização histórica seja da escravidão, seja da colonização, seja da diáspora, mas em seu lugar, diferente dos autores atuais, apontamentos para os caminhos da escolha que leva à liberdade.
Segundo os entendidos, a forma de expressão artística mais completa é a ópera, pois ela contempla a história, a representação, o teatro, a música, os figurinos e cenários, enfim, a totalidade da expressão, mas eu acredito que a ficção científica é ainda mais completa, pois carece de um demiurgo para ser concebida, e Delany é um demiurgo completo.
De toda sua vasta produção, no Brasil saiu apenas três livros: As torres de Toron, A cidade dos mil sóis e Babel 17, este último publicado junto com Estrela Imperial. É pouco e mostra o quanto ainda temos a percorrer para encontrar autores que se afastam dos cânones vitimistas atuais. Mas também é que no caso de Delany, o componente sexual é inseparável de sua jornada de escritor.
Foi um dos criadores do afrofuturismo e é comparado a Umberto Eco e Jorge Luis Borges; explorou territórios em que funde raça, gênero e sexualidade. Entre seus admiradores estão Neil Gaiman, Willian Gibson e Frederic Jameson, só para citar alguns.
Em 1999, publica uma história em quadrinhos, Pão e vinho, um conto erótico de Nova York, sobre seu relacionamento homossexual com um sem-teto branco e revela uma das mais inventivas e corajosas de suas narrativas autobiográficas. Atualmente, está publicando seus diários íntimos. O vol. 1, de 1957 a 1969, saiu nos Estados Unidos sob o título Em busca do silêncio.
Mas será em Babel 17 que ele utiliza a teoria do relativismo linguístico ou hipótese Sapir-Whorf, sobre como a linguagem tem o poder de afetar, em que a língua é uma ferramenta de formação de significado.
A hipótese Sapir-Whorf, também conhecida como relativismo linguístico, foi proposta nos anos 1930 por dois linguistas, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, que chegaram à formulação de uma tese que constituiu durante muito tempo uma referência para o relativismo linguístico.

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É a consolidação da teoria da visão de mundo proposta por Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), e consiste em determinar que a linguagem, fruto de um universo mental e cultural específico, revela uma concepção de mundo também específica. Assim, pensamento e linguagem estão intimamente ligados e que, podemos inferir, abdicar de uma cultura seria como abdicar da própria linguagem. Por extensão, o universo colonial que marcou uma forma ubíqua de experimentar o mundo não pode ser erradicado, muito ao contrário do que postulam os pensadores decoloniais latino americanos que tem como objetivo libertar a produção de conhecimento da episteme eurocêntrica. Teriam que alterar a própria linguagem e com ela o pensamento.
Não existem conhecimentos libertadores ou contra hegemônicos, já que é o próprio conhecimento, imerso na linguagem, e seu ensinar que é a base colonial.
Mas tal hipótese pode ser melhor compreendida se você encontrasse um russo e um Yudjá, que ainda falasse uma das 500 línguas do Brasil. Com qual deles haveria concordância quanto ao conceito de civilização, de humanismo, de especismo e de hierarquia em relação ao poder?
“O perspectivismo ameríndio diz respeito à síntese conceitual operada por Eduardo Viveiros de Castro (1951-) e Tânia Stolze Lima para tratar de uma importante matriz filosófica amazônica no que se refere à natureza relacional dos seres e da composição do mundo. O conceito sintetiza uma série de fenômenos e elaborações encontrados em etnografias anteriores sobre os povos ameríndios. De forma geral, a noção se refere a concepções indígenas que estabelecem que os seres providos de alma reconhecem a si mesmos e àqueles a quem são aparentados como humanos, mas são percebidos por outros seres na forma de animais, espíritos ou modalidades de não humanos. A construção dessa humanidade compartilhada se efetiva pela construção dos corpos. Quer dizer: a humanidade só se torna visível para quem compartilha um mesmo tipo de corpo ou para os xamãs, que são capazes de assumir a perspectiva de outros e vê-los como humanos.
A ideia de ponto de vista, central ao conceito, implica que só existe mundo para alguém. Isso é evidente quando Tânia Stolze Lima argumenta que a construção “os Yudjá pensam que os animais são humanos” é etnograficamente falsa. Em seu lugar, ela propõe a formulação Yudjá (também conhecidos como Juruna), de que “para si mesmos, os animais são humanos”. Portanto, tudo o que existe emerge para alguém: não há realidade que independa do sujeito.
A condição compartilhada por humanos e animais não é a animalidade (como para a ciência moderna, segundo a qual os humanos pertencem ao reino animal), mas a humanidade”. (http://ea.fflch.usp.br/conceito/perspectivismo-amerindio).
A essa forma de entender a humanidade, tenho chamado de humano-terra os seres que nos são equivalentes na estatura, na dignidade, na importância vital.
Só assim a hipótese Sapir-Whorf pode ser plenamente entendida, pois a visão de mundo nutrida pela linguagem não só elimina o sentido do multiculturalismo moderno-ocidental, mas o transmuta numa espécie de multiplicidade de naturezas que se desdobram dos corpos.
Em Babel 17, o modo como ele opera esse perspectivismo aparece na ausência de pronomes e na desconstrução da palavra “Eu”. Se existe um termo genealógico do modelo de expansão colonial eurocêntrico é exatamente o caráter moderno do indivíduo como algo separado da vida.
A personagem central do livro é uma heroína com traços orientais, uma poeta que deve liderar os militares na batalha. Em algum momento um deles diz: “eles mandaram uma poeta!”. A língua como uma arma.
Em pelo menos dois casos posteriores ao livro de Delany, a interpretação que fez da hipótese Safir-Whorf pode ser confirmada.
É o caso da tribo amazônica Amondawa, em que as estruturas linguísticas que relacionam tempo e espaço inexistem. O outro exemplo são os Pirarrã, que negam o principal conceito consagrado no mundo da linguística de Noam Chomsky, o da gramática universal (as estruturas básicas da linguagem nascem com o ser humano sem ser aprendidas). Em sua língua, dentre outras singularidades, não existem números e em casos especiais usam assobios como linguagem, produzindo tons, alongamentos de sílabas e acentuações peculiares à fala.
No filme A chegada (2017), a protagonista, uma linguista, é chamada para decifrar a língua de seres paraterrestres e quanto mais avança na imersão da conexão, começa a compreender também que a realidade e o tempo não são lineares, como sugere a representação gráfica que emitem, o círculo.
A dislexia é um termo criado pelo médico oftalmologista alemão Rudolph Berlin, em 1872, para nomear uma dificuldade em leitura apresentada por um de seus pacientes e acabou por significar o mesmo para todos que tem alguma dificuldade de leitura nos cem anos seguintes.
Samuel Delany conviveu com esse estigma, como tantos outros, que sentiram todo o peso da frase que acabaria consolidando a dislexia como um problema da linguagem: “não são os olhos que leem, mas o cérebro”.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor

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