Política

Psiquiatra afirma que é preciso “salvar as bolsopessoas”

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As bolsopessoas são pessoas muito comuns, em todos os sentidos, e não são como os bolsonaristas de carteirinha

(Imagem: Sérgio Lima | Poder360)

Ana Marta Lobosque*, DCM

P.s. Este texto foi publicado por ocasião das eleições de 2018, mas está mais atual do que nunca.

Ganhando ou perdendo as eleições, vamos ter de levar em conta esse novo tipo de brasileiro que são as bolsopessoas.

As bolsopessoas são pessoas muito comuns, em todos os sentidos. Comuns porque fáceis de encontrar: elas agora estão em toda parte. Comuns porque são muito parecidas umas com as outras.

Não, elas não são como os bolsonaristas de carteirinha: não matam gays, não defendem a tortura, não querem a ditadura. No entanto, não se importam nem com os gays, nem com os torturados, nem com os regimes autoritários; elas não se importam muito com o mundo, as bolsopessoas, porque vivem no horizonte muito limitado de uma classe que melhorou um pouco de vida nos últimos anos.

Elas não são também como os bolsonaristas ricos, políticos ou empresários. Pelo contrário: bolsopessoa é a faxineira do seu prédio, aquela que tem um filho preso, mas acredita na polícia; é o motorista do Uber, aquele que fez faculdade mas está desempregado; é o seu colega de trabalho, que vive dando nó mas faz discurso contra a corrupção.

As bolsopessoas não se manifestam muito, não impõem seu voto nem mesmo gostam de falar no assunto. Muitas vezes são educadas – um pouco demais, até. Não gostam de discordar, divergir, discutir, se opor. E a gente (desculpem o velho cacoete psi), fica se perguntando o que é que elas fazem com a agressividade que existe em cada um de nós ( tanto esforço pra se conter não acaba fazendo com que, sem percebê-lo, elas cultivem um fraco pela ferocidade bolsonariana?).

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As bolsopessoas não são muito chegadas ao tipo de pensamento exigido pela prática da argumentação – muito possivelmente, por falta de hábito, vivendo, como vivem, em ambientes alheios a arte, cultura, leitura. Muitas vezes procuram se instruir – valorizam diplomas, formaturas e afins; querem também aprender tudo o que for útil para ganhar um dinheirinho a mais. Mas se lixam se a filosofia está sendo banida do currículo em troca da moral e cívica, pois, para elas, trata-se da mesma conversa fiada.

As bolsopessoas são crédulas: acreditam nas mensagens que chega aos seus zaps, sobretudo quando acreditar lhes convém.

Mas as bolsopessoas são céticas, por outro lado: duvidam de tudo o que a gente diz, sobretudo quando não querem acreditar.

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As bolsopessoas, como mostrou a pesquisa de ontem, votam em candidatos que, segundo elas próprias, defendem os ricos; as bolsopessoas gostam bastante de grana, e acham que num mundo bolsonariano seus méritos de cidadãos de bem lhes darão acesso a mais conforto e a mais bens.

Enfim, as bolspessoas não são nada interessantes – e tudo que porventura possuam de singular e original encontra-se neste momento completamente elidido.

As bolsopessoas têm, é claro, capacidade de afeto, amizade, solidariedade – mas todas essas qualidades se voltam apenas para os seus, pouco se importando com o mundo em redor.

Como vocês veem, eu não gosto nem um pouquinho delas, Mas preciso me lembrar de que elas nem sempre foram bolsopessoas, mas estão vivendo num momento que as incentiva a tornar-se assim. Que nelas existe, em algum lugar hoje invisível, um conflito entre a indiferença e a generosidade, entre a agressividade disfarçada e a disposição para lutar, entre a covardia e a coragem.

Então, vamos ter de conviver com as bolsopessoas, não é? No momento, estou achando isso quase insuportável. Mas conviveremos. Sem ódio, sem ressentimento, mas também sem eximi-las da responsabilidade pela posição que tomaram. Se algum dia entenderem, talvez um dia elas voltem a ser o que eram antes desse inferno, e/ou se transformem nas pessoas melhores que podem ser. Pode ser que sim. Ou não.

Mas urgentemente, com certeza, prioritariamente, temos que encontrar jeitos de produzir outro tipo de pessoas. Outras configurações subjetivas, outras modalidades de pensamento e afeto, outros gostos e outras inclinações. Pais, educadores, trabalhadores psi, companheiros da esquerda em geral: temos de inventar com urgência um outro tipo humano.

*Ana Marta Lobosque é psiquiatra, militante da luta antimanicomial, protagonista da implantação da Reforma Psiquiátrica Brasileira

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