Feminismo

Mulheres em tempos sombrios: a humilhação de existir

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Falar de justiça é romper os parâmetros impostos pelo patriarcado, é não permitir que isso se torne uma realidade, dentro das diversas realidades opressivas que vivemos

(Imagem: RedHistoria)

Camila Koenigstein*
Liliana Andrea Guzmán*

De tempos em tempos, e nas últimas décadas, temos observado mudanças nas estruturas de dominação masculina sobre os corpos femininos e feminizados. O avanço do neoliberalismo e atualmente a ascensão de governos autoritários demonstram que o patriarcado é uma estrutura que muitas vezes parece inquebrantável, sobrevivendo às diversas transformações nos âmbitos social, econômico, cultural e até mesmo religioso.

Embora aparentemente os últimos dois séculos tenham movimentado o universo feminino, por meio dos “direitos” adquiridos, encontramos, ainda, talvez o paradigma maior a ser destruído: o direito sobre nossos corpos e o domínio da nossa psique.

Se por um lado conseguimos o direito ao voto, ao “estudo”, inserção no mercado de trabalho e um certo controle sobre reprodução, contando com o advento da pílula contraceptiva e o uso de preservativos, o que alimentou equivocadamente a ideia de libertação sexual, por outro lado estabelecemos um duro confronto com todas as estruturas até então dominadas somente pelos homens.

Nossas parcas conquistas foram feitas de dor, mortes, internações em manicômios, suicídios e fome, muita fome. Apesar de escutarmos pouco sobre a má alimentação feminina, ela marcou e ainda marca a realidade de diversas mulheres.

Uma boa comida é muito importante para uma boa conversa. Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se se comeu mal. Lâmpada na espinha não acende com carne de vaca e ameixas secas. (Virginia Woolf)

Embora o direito ao voto tenha sido de grande importância, ainda não somos representadas, a política há séculos é movida por homens, nosso voto é destinado a eles, já que não chegamos a preencher espaços no campo político, menos ainda no legislativo.

Nossos pseudo ganhos são facilmente destruídos quando observamos a materialidade histórica, que a cada dia mostra que somente algumas são eleitas para determinados espaços, a falsa “representatividade” dada como migalhas e nós como galinhas brigando entre nós mesmas, jamais com o dono do galinheiro, que fica com a maior porção.

O estudo pode ocorrer, mas ainda não conseguimos igualdade de espaços dentro das instâncias acadêmicas. Normalmente a produção do saber sai da escrita e da boca de homens, em geral brancos e repletos de privilégios, privilégios esses que inclusive garantem que existam abusos nas universidades e o silêncio prevaleça. O eterno pacto, a confraria masculina, que preserva uns aos outros.

O uso de contraceptivos nas primeiras décadas de sua fabricação causou câncer e a morte de diversas mulheres, e até hoje muitas sofrem embolia[1], perdem membros, devido aos efeitos colaterais do medicamento. Ainda assim, a responsabilidade da gravidez é da mulher, o que expõe uma face cruel da sociedade, que pouco se interessa pela saúde feminina. Exames de trombofilia nem sequer são pedidos antes da prescrição de contraceptivos, isso quando as mulheres têm acesso a atendimento médico. No entanto, o mais importante é não fazer aborto, uma luta que envolve todas as esferas do poder patriarcal.

Enquanto isso, as mulheres têm recebido trabalho reprodutivo não remunerado, o que gera dependência e desigualdade. Federici destacou que após a incorporação da mulher ao trabalho fora de casa não houve mudança social. A inexistência de conciliação entre essas duas formas de trabalho, produção e reprodução, gerou uma dupla situação de exploração e violência. (Silvia Federici)

O uso do preservativo é, frequentemente, determinado pelos homens. Muitas mulheres sentem inibição de pedir a eles que utilizem camisinha, e ficam expostas a várias doenças. Os homens não foram “educados” para utilizar e as mulheres, principalmente as que pertencem a outra geração são impactadas pelo mito da mulher promíscua. Na última década o HIV aumentou entre mulheres casadas acima de 60 anos que, ocupando o espaço doméstico, e respeitando o vínculo do matrimônio criado para cercear sua liberdade, expõem seu corpo ao companheiro, como se o ato do casamento pudesse garantir alguma ética.

Sim, há ocupação de postos de trabalho, no entanto, com pagamentos menores, que alimentam a maquinaria capitalista, por vezes em condições precárias, mas que permite o sustento da família. Nesse sentido, muitos homens se aproveitam e fazem com que as mulheres exerçam duas ou mais jornadas de trabalho: casa, maternidade e profissão.

Essa é somente uma parte do trágico que é vendido sob o slogan de liberdade.

Dentro desse cenário profundamente triste, mas repleto de discursos “inclusivos” que servem para desviar nossa atenção, vamos de encontro ao trágico.

A religião regula nossas vidas, e ainda que, individualmente, não exista crença em religião alguma, mulheres  sofrem o medo e a opressão dos dogmas elaborados por homens há séculos.

Em 2014, o filme O Julgamento de Viviane Amsalem retratou o caso verídico de uma mulher que decide pedir o divórcio. Em uma sala composta apenas de homens, um tribunal rabínico, ela se vê em desespero. Seu único desejo é a separação, que só consegue depois de cinco anos de audiências em que era exposta constantemente. Vizinhos, familiares, todos aparentemente sabiam as razões pelas quais deveria seguir casada. O divórcio foi concedido quando ela prometeu que jamais estaria com outra pessoa. O caso Viviane é só um exemplo do poder exercido não somente nos corpos, mas no desejo feminino.

No código penal da Jordânia há uma redução punitiva ao esposo ou familiar que mate a mulher em suposto ato de adultério. No ano de 2017, a organização internacional Human Rights Watch constatou: “Anualmente, entre 15 e 20 mulheres e meninas são queimadas, espancadas ou esfaqueadas até a morte por familiares, após supostamente transgredirem códigos sociais relativos à honra”.

Os crimes de honra são uma prática comum em muitas comunidades religiosas, com destaque para as que se localizam no mundo árabe. Na Europa, o governo alemão demonstrou preocupação com o crescente aumento desses crimes. O aumento está claramente vinculado ao desejo de muitas jovens de construir uma vida própria, sem se casar nem seguir as tradições patriarcais – o preço é a própria vida.

Os inegáveis casos de violações da Igreja Católica e de outras igrejas cristãs vêm evidenciando o abuso de poder mesmo no âmbito do que se considera espiritual e distante.

O silêncio de autoridades religiosas e de seus paroquianos que não deixaram passar esses processos para o campo jurídico demonstra o desinteresse em resolver os casos. Esses abusos ocorrem em cenários de confiança entre o pastor ou padre e o fiel. As principais vítimas são crianças e mulheres. A Bíblia é usada como elemento de dominação, em favor das paixões dos homens que se consideram sagrados.

Da mesma forma, no Chile, encontramos uma tempestade dentro da Igreja Católica. Quase 160 pessoas (entre bispos, padres ou leigos vinculados à Igreja) foram investigadas por abuso sexual desde 1960, o que demonstra um histórico desse tipo de crime por parte da instituição religiosa. Em 2018, em viagem ao país sul-americano, o papa Francisco saiu em defesa do bispo Juan Barro, acusado de encobrir o abuso sexual de menores nas décadas de 80 e 90.

No México, a cidade de Juarez é exemplo da impunidade quando pensamos em violência contra a mulher. Desde 1993 ocorrem mortes de jovens entre 15 e 25 anos, todas com o mesmo perfil – no entanto, pouco foi feito, inclusive pelo atual presidente dito progressista, Andrés Manuel López Obrador, eleito em 2018.

O Estado mexicano fecha os olhos para a barbárie, mesmo que artistas como Mayra Martell, fotógrafa reconhecida, exponham por meio de seu trabalho o sofrimento dos familiares e o que ficou dessas vidas que foram retiradas de modo brutal, não há comoção.

A primeira morte de Marisela Escobedo foi quando sua filha Rubí, de 16 anos, foi assassinada. A segunda, quando a Justiça mexicana absolveu o assassino. A terceira, quando em dezembro de 2010 Marisela levou um tiro na cabeça que acabou com sua vida. Rubí foi morta em agosto de 2008 em Ciudad Juárez, no Estado de Chihuahua, no norte do México. O assassino, Sergio Rafael Barraza, era seu companheiro. Ele jogou os restos mortais da jovem em um depósito de porcos, onde foram encontrados meses depois do crime.

No Haiti, meninas sofreram violação em troca de uma garrafa de água potável e dinheiro – o poder militar, orgulho dos países que enviaram seus soldados em nome da “paz”. O Brasil está entre as nações mencionadas nos crimes, no entanto, há ausência de explicações de todos os envolvidos, um pacto de silêncio masculino.

Uma investigação do portal acadêmico The Conversation, que foi replicado por meios de comunicação como The Washington Post e The New York Times, acusou que capacetes azuis da Missão de Estabilização das Nações Unidas (Minustah) no Haiti abusaram sexualmente de mulheres e meninas em troca de comida ou dinheiro. Nos antecedentes, é mencionado que 256 crianças nasceram de pais de soldados de uma lista de 13 países – a missão chilena estaria entre os acusados. Entre as mães, há meninas de 11 anos.

Para a antropóloga Rita Segato, o corpo da mulher se tornou uma espécie de território onde o homem exerce seu poder. As causas são muitas, quase todas vinculadas ao capital voraz, que objetifica e coisifica os corpos dos mais vulneráveis. Para a autora, há uma pedagogia da crueldade, um ensinamento que vai além de matar […] o ataque sexual e a exploração sexual de mulheres são atos de urubus que comem o corpo que constitui a linguagem mais precisa coisificando a vida que ali habitava. Os restos mortais não vão para o cemitério, mas para lixões.

No capitalismo quase apocalíptico, os corpos femininos estão sofrendo todo o tipo de barbárie. Os filmes pornográficos, a maior expressão da pedagogia da crueldade e objetificação, expõem os corpos femininos como coisa a ser comprada, como pacotes, um Netflix sádico. Os usuários pedem mulheres com aspecto infantil, desprovidas de pelos para remeter uma imagem infantil, o que revela a necessidade de mostrar controle, solicitam cada vez mais gritos, algo que soe quase como súplica, e violência, muita violência, deixando até mesmo as “atrizes” com hemorragias e traumas psíquicos gravíssimos.

Dessa realidade que parece tão desconexa, tão fragmentada, mas unida pelo mesmo fio, o poder do macho, surgem casos como o do jogador Robinho e seu discurso asqueroso: “Não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada”.

Seu ato covarde, realizado juntamente com seus amigos, é retrato dessa soma de pedagogias que passam despercebidas dentro de casa, atos “menores” de “meninos”.

No dia 3 de novembro, surgiu o vídeo do julgamento de Mariana Ferrer, jovem de 23 anos que foi estuprada durante uma festa por André de Camargo Aranha. Conhecido por defender pessoas com condutas claramente imorais, o advogado de Aranha expõe a jovem com frases e insultos que levaram a vítima ao choro e desespero. “Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha-pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, disse Cláudio Gastão da Rosa Filho durante a audiência de instrução e julgamento.

Quatro homens marcaram para sempre a vida dessa mulher, e cada mulher no mundo já sofreu algum tipo de abuso e teve sua vida marcada.

A justiça que desejamos para Mari Ferrer é a mesma que desejamos para Marielle Franco, Cláudia da Silva Ferreira, Berta Cáceres, Marisela Escobedo e para mulheres de todo o mundo e de um continente que não sabe quantos estupros ocorrem anualmente, mas mostra que tampouco há interesse.

Falar de justiça é romper os parâmetros impostos pelo patriarcado, é não permitir que isso se torne uma realidade, dentro das diversas realidades opressivas que vivemos.

Não existe “estupro culposo”, mas existem homens com poder que determinaram que sim,   há séculos julgam e condenam mulheres. Eles disseram que sim, nós gritamos que não! Mas gritar não basta, necessitamos agir, e a ação é feita na rua, na escrita e na política. Mais do que nunca  necessitamos  resgatar o núcleo duro do feminismo e recomeçar tudo novamente.

O #JustiçaPorMariFerrer, é só uma frase de efeito, uma gota dentro do mar de sangue em que há séculos nadamos.


[1] De acordo com o cardiologista Rafael Belo Nunes, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, não há comprovação do real motivo da relação entre anticoncepcional e risco de trombose.

Contudo, estudos apontam a teoria de que esse contraceptivo causa resistência às proteínas C-reativas, que são anticoagulantes naturais do organismo. Com isso, o sistema circulatório fica desequilibrado e mais propício a criar coágulos e, consequentemente, eventos relacionados à trombose.


Referências:

https://www.torcedores.com/noticias/2020/10/robinho-estupro-mulher-completamente-bebada

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54561637

https://www.torcedores.com/noticias/2020/10/robinho-estupro-mulher-completamente-bebada

https://www.hospitaloswaldocruz.org.br/imprensa/noticias/trombose-causada-por-anticoncepcional-sintomas-e-pilulas-mais-perigosas

https://elpais.com/elpais/2017/09/06/mujeres/1504727305_290590.html

Segato, Rita. Contra pedagogías de la Crueldad. 1Ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Prometeo, 2018.

Woolf, Virginia. Un cuarto propio. 1Ed en la Argentina bajo este sello. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Lumen, 2014.


*Camila Koenigstein é graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

*Liliana Andrea Guzmán é graduada em História, pela Universidad del Valle (Cali – Colômbia). Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

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