Delmar Bertuol
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Religião 09/Ago/2020 às 12:23 COMENTÁRIOS
Religião

O dia em que ensinei minha filha de 4 anos a rezar

Delmar Bertuol Delmar Bertuol
Publicado em 09 Ago, 2020 às 12h23

Delmar Bertuol*, Pragmatismo
Político

Um condescendente sol aquecia o dia a 26 graus, em pleno início de agosto. Obrigado, São Pedro, pelas lindas horas que proporcionou quando fui visitar minha pequena, em isolamento social na praia. Agradeço a São Pedro por mera ilustração retórica, pois não lhe acredito, conforme explicação porvir.

Fato é que caminhávamos pela orla. De máscara. Aliás, um parênteses: (usem máscara!). Atrevi-me a salgar os pés no mar. Minha filha não quis se arriscar. Mas não que não tenha se divertido. A ensinei a descer das dunas sem precisar de minha ajuda: sente-se e role a bunda abaixo. Escorregador natural.

Findado o passeio pelas areias, nos deparamos com a imagem de Nossa Senhora de Navegantes (ou Iemanjá?) no calçadão que dá à praia.

Minha filha, de quatro anos, ainda não sabe diferenciar imagens de santos, de Jesus ou outros. Apenas pelos adornos e geralmente velas ao redor, automaticamente relaciona as estátuas à religiosidade. Na verdade, ela certamente não conhece essa palavra/conceito (acho que nem eu, a bem da verdade). Ela liga as imagens ao Papai do Céu.

E toda vez que vê algo assim, religioso, quer rezar. Provavelmente aprendeu na escola, pois a mãe dela e eu não a ensinamos isso. Pensamos que devemos respeitar o seu tempo de escolher. Mas também não critico a escola. Talvez a instituição esteja mostrando um caminho possível, algo que, de certa forma, os pais dela podem ter negligenciado. Enfim, a discussão é complexa.

Sem eu dizer nada, ela se ajoelhou ante o altar em que estava a santa azul e fechou os olhos. Me convidou pra eu fazer o mesmo.

Expliquei-lhe que não. Que eu não rezava. Que era cético. Usei esse termo mesmo. Ela tem que se acostumar ao vernáculo. Falei, depois em linguagem mais infantil, que também não adianta ser pedante e não se fazer entender, sobretudo com crianças. Sobretudo com uma criança que se quer muito ensinar, minha filha, que algumas pessoas gostam de rezar, outras não. Mas avisei que ela podia rezar, não havia problemas nisso.

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Aí, de olhos cerrados e ajoelhada, ela me perguntou “o que tinha que fazer agora”.

Não titubeei. A religiosidade é subjetiva. Minha pequena terá total liberdade de escolher seguir qualquer religião oficial, crer no que julgar com mais sentido, não crer em nada, se isso lhe fizer sentido, ou acreditar em algo, mas que não esteja representada por nenhuma instituição, como seu pai. Não quero, no entanto, que ela paradoxalmente se torne egoísta e sem a capacidade de empatia justamente por causa de sua religião/religiosidade. Religião, pela etimologia, religar, juntar. Unir.

Falei que ela fechasse os olhos e pensasse só em coisas boas. Que pedisse ao Papai do Céu que ajudasse ela, o papai, a mamãe, os avós e todas as pessoas. Todas, sem exceção. Mesmo as que não rezavam pra Papai do Céu. Porque pra Papai do Céu, nenhuma pessoa é pior do que outra.

Ela nem tem cinco anos ainda. Mas vamos seguir conversando sobre. Espero que um dia ela entenda que pode ser que Papai do Céu não exista; que pode haver outro ou outros papais do céu. Ela vai compreender que, requisito pra ser papai do céu é não distinguir ninguém por cor de pele, orientação sexual ou mesmo crenças religiosas. E que nenhuma papai do céu de verdade, não os inventado, cobra ingresso pra entrar no céu.

Papai do Céu, se o senhor existe, perdoe meu ceticismo e proteja a todos. Em especial minha filha.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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