Saúde

Cognicídio

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O cognicídio não necessariamente leva a responsabilização jurídica do governo por genocídio, mas determina que muitas vidas não sejam preservadas ou que muitas mortes não sejam evitadas.

Ato em Brasília para marcar os mortos pela Covid-19 (Imagem: Adriano Machado | Reuters)

Jonathas Carvalho*, Pragmatismo Político

Diante dos 3 milhões de infectados e 100 mil mortos lamentavelmente consolidados em 08 de agosto de 2020, dos mais de 3 milhões e 400 mil infectados e mais de 110 mil mortos por COVID-19 no Brasil até a presente data e considerando ainda o ululante número diário de casos e o eminente grau de subnotificação de infectados e mortos que apenas o deslindamento da história permitirá uma compreensão in totum da realidade, é preciso não apenas se solidarizar com as famílias enlutadas, mas também conceber a problematização das difusas condutas governamentais para percepção sobre novos segmentos de combate à maior crise sanitária da história de nossa nação.
Sensivelmente os equívocos do Brasil no combate à COVID-19 perpassam por cinco segmentos:

a) políticos, de modo que não houve um conjunto qualificado e articulado de políticas públicas emergenciais entre os entes federativos como governos estaduais e municipais para conter o avanço da pandemia;

b) institucionais, na medida em que o poder público a partir do Governo Federal (seguido por alguns governos estaduais e municipais) e seus respectivos órgãos subordinados não atuam com ênfase no combate à pandemia em termos de investimentos financeiros, testagens em massa, políticas georreferenciadas, promoção de isolamentos sociais brandos e rígidos, auxílios financeiros para manutenção de pessoas físicas e jurídicas, promovem uma debacle estratégica de combate à pandemia;

c) sanitários, considerando que um país que historicamente pouco investe em políticas basilares de saneamento básico está vulnerável à pandemia, em especial, as classes mais pobres. Por exemplo, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), desenvolvida pelo IBGE (2019), afirma que aproximadamente 9 milhões de lares no Brasil não possuem acesso à rede de esgoto e o número vem crescendo desde 2016;

d) sociais, já que a pandemia, embora seja uma doença advinda das castas mais elitizadas da sociedade, teve seu apogeu nas grandes comunidades carentes de estrutura e infraestrutura de cuidados, tais como sanitários, moradia, renda e planejamento familiar (a pandemia é uma doença que não escolhe pessoas, mas ataca de maneira mais veemente os grupos mais fragilizados que adensam majoritariamente os contextos mais pobres da nação); e

e) cognitivos, considerando a necessidade do uso do conhecimento, mormente o científico, através de uma articulação ampla de especialistas para composição de um planejamento para o combate à pandemia que deveria nortear as atividades dos segmentos anteriores, mas que foi conduzida de maneira assistemática e anticientífica com tendência dolosamente estupefaciente em nível nacional.

Esses cinco segmentos, vistos de maneira articulada, denotam como o combate à COVID-19 tem sido relegado a um plano inferior por parte do poder público nacional e comprometem concomitantemente a preservação de vidas e a sustentabilidade político-econômica. É factível que as deficiências nos segmentos de combate à pandemia trazem marcas indeléveis para a sociedade brasileira que serão ainda mais perceptíveis com o transcorrer da realidade.
Diante de tais aberrações políticas, institucionais, sanitárias, sociais e cognitivas, o Brasil caminha para aquilo que eu chamaria de cognicídio, ou seja, a morte do conhecimento, principalmente o científico, para lidar e resolver os problemas gerais da pandemia como se a ciência tivesse perdido o seu valor cognitivo referencial no sentido de não mais ocupar a centralidade dos debates teórico-práticos e reflexivo-propositivos da realidade que se dá, sobretudo, pelas formas como o governo em nível federal avalia o conhecimento científico.

O cognicídio é referente ao desprezo pela ciência, incluindo toda carga de construções e recomendações instituídas por pesquisadores e instituições político-científicas que se dá no cumprimento de ações que se orientam pelo senso comum regulando ações de interesse público de forma assistemática (sem os procedimentos técnicos e metodológicos orientados pela ciência) e monista (encontra explicações únicas e aleatórias para a realidade).

Esse cognicídio tem seu limiar nas ações governamentais, se massificam nos múltiplos setores da sociedade e se consolidam pelas intervenções e interferências de grandes grupos governamentais e/ou alternativos através de conveniências políticas, econômicas e culturais que visam à satisfação de valores, ideologias, intuições, sensações, imaginações, crenças e percepções. E quais os apanágios possui o cognicídio?

Em primeiro lugar, o cognicídio é marcado pelo negacionismo. O lema é “negar tudo o que for possível” ou “tanto quanto possível”. Há uma estruturação sibilinamente (i)lógica do conhecimento na medida em que as negações seguem escalas do tipo: negar a existência da pandemia (grau mais alienante do negacionismo), negar a repercussão da pandemia, negar (no sentido de relativizar) a quantidade de infectados e mortos, negar a pertinência do empreendimento de meios e responsabilidades para o combate à pandemia. A negação é uma forma simultânea de confundir a sociedade sobre os rumos a pandemia e de se eximir sorrateiramente do combate.

Em segundo lugar, o cognicídio é marcado pelo acusacionismo. Quando a estratégia de negar o conhecimento não for suficiente, a intencionalidade se volta para acusar o conhecimento que de forma mais materializada se volta para a acusação de pesquisadores e instituições político-científicas. O acusacionismo se fortalece nos seguintes vieses: há uma histeria de setores da mídia, do Congresso, do STF e da sociedade com a pandemia; a ciência não tem uma solução efetiva para os problemas da pandemia; a ciência está equivocada nos procedimentos para o combate à pandemia; propomos um remédio para o combate à pandemia e mesmo sem comprovação científica é preciso tentar, pois não há ainda uma solução medicamentosa (remédio ou vacina) para a pandemia; o isolamento prejudica a economia e também mata. O acusacionismo é imperiosamente ofensivo ao conhecimento e improdutivamente resolutivo, pois especula sem qualquer base técnico-científica.

Em terceiro lugar, o cognicídio é marcado pelo anti-historicismo. Como o ato de negar e acusar é permanente, é preciso desvirtuar o conhecimento no contexto histórico a fim de manipular dados, conteúdos e mensagens para justificar ações, bem como para responsabilizar outras instituições (Congresso, STF, mídia, etc.). Por exemplo, deturpar dados sobre infectados e mortes por COVID-19 é um ato apelativo contra o conhecimento porque não somente inibe a análise histórica, como tenta inibir a incompetência do governo no combate à pandemia. Outro exemplo é a relativização de previsões durante o transcurso histórico como “vai morrer menos gente que a gripe suína” ou “a COVID-19 é uma gripezinha” que atua como uma espécie de quiromancia especulativa (não pela previsão em si, mas pela destituição completa de elementos técnico-científicos que a justifiquem). Quanto mais se desvirtua historicamente o conhecimento sobre os eventos que norteiam a pandemia, mais incute na sociedade a escassez de uma reflexão que permita uma compreensão histórica da realidade.

Em quarto lugar, o cognicídio é marcado por tornar a pandemia uma pauta secundária. A ideia é minimizar os impactos nocivos da pandemia e a incompetência governamental a fim de evitar a derrocada da popularidade do governo, inserindo pautas ideológicas nos contextos dos movimentos sociais, além de emulações político-partidárias com toda a efervescência passional do negacionismo e acusacionismo para que a pandemia seja vista por uma via distante e rasteira.

A articulação entre os quatro elementos que compõem o cognicídio expressam os motivos pelos quais o Brasil não tem conseguido controlar a pandemia e mesmo após mais de cinco meses, os números de infectados e mortos ainda são alarmantes. Certamente, se o governo em nível federal tivesse cumprido com os compromissos políticos, institucionais, sanitários, sociais e cognitivos em cooperação com os demais entes federativos, seria possível inibir o crescimento da pandemia no Brasil.

O cognicídio não é marcado apenas pela ‘morte ao conhecimento’ no sentido de seguir as orientações da ciência e a elevação máxima da ignorância, mas pela debacle dos princípios constitucionais no combate à pandemia que resultam em menos investimentos do que o necessário, políticas públicas ineficazes, deterioração das instituições e o aumento exponencial de infectados e mortos.

O cognicídio não necessariamente leva a responsabilização jurídica do governo por genocídio, mas determina que muitas vidas não sejam preservadas ou que muitas mortes não sejam evitadas. No entanto, o cognicídio é o genocídio do conhecimento orientado pela ciência que traz um conjunto de consequências flagrantemente nocivas para a sociedade brasileira que se encontra dramaticamente desorientada sobre como agir nos procedimentos de combate à pandemia.

O cognicídio é fruto de uma (anti)política tacanha do governo federal, sendo urgente e primacial que construa uma nova política cognitiva orientada pela ciência considerando o sentido cooperativo entre os demais entes federativos, parcerias com instituições técnico-científicas (fundações científicas e universidades) públicas e privadas para o desenvolvimento de pesquisas, uso qualificado e transparente dos dados públicos, orientações qualificadas sobre procedimentos para evitar COVID-19 etc., com vistas ao aprimoramento das atividades políticas, institucionais, sanitárias e sociais e, por conseguinte, evitar uma quantidade ainda maior de infectados e mortos.

Portanto, o cognicídio é uma questão eminentemente (anti)política de notação marcadamente ideológica e sua continuidade pode gerar prejuízos jamais vistos na história do Brasil aos diversos setores da sociedade, especialmente os mais pobres que tendem a se recuperar muito mais lentamente de crises.

*Jonathas Carvalho é doutor em Ciência da Informação pela UFBA e Professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA)

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