Contra o Preconceito

Os trabalhadores que não são enxergados pela sociedade

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Profissões invisíveis: como é não ser enxergado pela sociedade? Apesar de desempenharem funções essenciais, muitos trabalhadores são quase sempre ignorados ou até mesmo humilhados

Caio Lencioni, Observatório 3º Setor

Você já se perguntou qual a sensação de se sentir invisível? Para profissionais de diversas áreas, essa sensação se faz presente o tempo quase todo. Mesmo desempenhando funções essenciais, como varrer as ruas, sepultar pessoas ou coletar materiais recicláveis, muitos trabalhadores são simplesmente ignorados pela maioria das pessoas. Ou até mesmo humilhados.

Os catadores, por exemplo, são responsáveis por quase 90% do lixo reciclado no Brasil, segundo o Ipea. Mas poucas pessoas lembram desse tipo de informação quando se fala nesses trabalhadores.

Da mesma forma, imagine por um momento o caos que ficaria a cidade sem os serviços prestados por garis, faxineiros, sepultadores, porteiros e tantos outros profissionais que parecem invisíveis para muitos.

O tema da invisibilidade de certos profissionais inspirou até uma tese de doutorado em Psicologia Social. Durante dez anos, o pesquisador Fernando Braga da Costa se vestiu de gari ao menos uma vez por semana para vivenciar o dia a dia da profissão e conversar com quem depende dela para sobreviver. E entre as muitas constatações que fez está a de que, apenas por colocar a roupa de gari, ele se tornava quase automaticamente invisível. Muitos colegas e professores que conviviam com ele na Universidade de São Paulo (USP), ao verem-no vestido de gari varrendo as ruas da própria universidade já não o reconheciam.

Essa invisibilidade é uma expressão construída historicamente a partir de dois fenômenos psicossociais: a humilhação social e a reificação (transformação em coisa)”, aponta Costa.

Elizangela Gomes, de 38 anos, trabalha como gari há 7 anos. Filha de pedreiro e empregada doméstica, ela relata que já vivenciou episódios de humilhação no trabalho, mas diz não se importar. “Tem gente que passa por nós e cospe, mas eu não ligo para isso. Se eu for debater é capaz que eu me torne alguém pior que essas pessoas”.

Outro episódio que Elizangela relata aconteceu com uma amiga, que também exerce a profissão de gari. “Ela pediu um copo de água para a pessoa. Essa pessoa deu o copo de água, mas disse para ela jogar o copo fora”.

De acordo com Costa, essas humilhações e exclusões, sofridas em sua maioria por pessoas de baixa renda, trazem consequências. “Essas consequências fabricam sintomas e agem nocivamente sobre essas pessoas. Isso molda a subjetividade delas”.

Por conta de humilhações, Elizangela conta que uma colega de trabalho tem vergonha de dizer que trabalha de gari. “Ela chega em casa, lava o uniforme e esconde. Quando perguntam sobre o trabalho dela, ela diz que trabalha em um escritório”.

A gari acha estranho que em pleno século 21 algumas pessoas gostem de humilhar. “Só porque a outra pessoa está num patamar acima? Acho que pessoas com esse pensamento têm a mente muito pequena”.

Por mais que esses episódios sejam frequentes, ela diz que existe o lado bom da profissão. “A gente faz amizade com muitas pessoas. Algumas delas dão café e tratam você super bem, sabe? De igual para igual mesmo”.

De acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho (CAGED), disponibilizados no site salário.com.br, a média salarial do trabalho de gari no Brasil, que tem uma jornada de trabalho de 44 horas semanais, é de R$ 1.117,54.

Mãe de dois filhos, uma garota de 19 anos e um menino de 13, Elizangela diz que gostaria de ter um outro emprego, mas que a prioridade no momento são os filhos. “Queria fazer um curso de enfermagem, mas agora com filhos e contas para pagar, é muita coisa, aí fica difícil”.

Já Francivaldo Almeida Gomes conseguiu mudar de emprego em 2002. Mesmo com a mudança, o local de trabalho da antiga profissão foi mantido. “Trabalho no Cemitério da Consolação desde 2000”, diz o guia do local.

Antes de se tornar guia do famoso Cemitério da Consolação, “Popó”, como é conhecido no cemitério, foi sepultador. “Foi muito difícil quando comecei a trabalhar como sepultador. Passei uns 20 dias sem fazer uma alimentação adequada”, conta.

O guia explica que essa dificuldade para comer se devia a uma dificuldade inicial em lidar com tantas pessoas que haviam perdido familiares e amigos. A comoção era tanta que um novo desafio estava presente na sua vida: “lidar com mortos e não mais com vivos”.

O CAGED aponta que a média salarial do trabalho de sepultador é de R$ 1.247,77, com uma jornada de trabalho de 43 horas semanais.

Além do sofrimento que Francivaldo absorveu nos primeiros dias como sepultador, ele também vivenciou o preconceito contra a profissão. Um dos episódios que o marcaram foi o dia em que levou uma sobrinha ao trabalho dela.

Quando a chefe da minha sobrinha perguntou sobre a minha profissão, o tratamento comigo mudou da água para o vinho. Até o momento que ela não sabia que eu era sepultador, eu tinha tido uma ótima recepção”.

Popó completa que, ainda nessa situação, percebeu que a chefe de sua sobrinha pediu para um dos empregados continuar conversando com ele, enquanto ela se direcionou para o quarto.

Mesmo com essas experiências, Francivaldo diz que há uma importância na profissão de sepultador. “Mesmo com a rejeição, essa mulher que me destratou precisará do trabalho de um sepultador. É uma profissão que é importante e está na sociedade”.

Assim como a amiga de Elizangela, que dizia que não trabalhava de gari ao perguntarem sobre sua profissão, o atual guia do cemitério tinha uma atitude semelhante. “Quando comecei a perceber o preconceito, eu dizia que trabalhava na prefeitura”.

Atualmente, Popó diz que “estuda a morte para melhor compreender a vida”. E tenta passar a experiência adquirida nestes anos através das visitas monitoradas, que realiza desde 2002, ano em que Délio Freire dos Santos, antigo guia do cemitério, morreu.

Ele foi o percursor das visitações monitoradas em cemitérios. Tive a oportunidade de andar pelo cemitério com ele algumas vezes. Nessas andanças, ele me ensinava sobre a história das personalidades que aqui estão enterradas”.

A partir dessas caminhadas, Francivaldo diz que começou a se tornar referência para pessoas interessadas nas informações e histórias de quem está enterrado ali. “Esse foi o começo para eu amar a história de São Paulo e me aproximar da história de pessoas que têm seus nomes em livros, revistas e logradouros”.

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