Drogas

Por que mudei de ideia sobre a foto de Gregório Duvivier

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A foto do Gregório Duvivier em uma plantação caseira de maconha me chocou desde o início, e confesso que não foi pelo ponto tão claramente descrito no texto que segue

Matê da Luz, Jornal GGN

A foto do Gregório em uma plantação caseira de maconha me chocou desde o início, e confesso que não foi pelo ponto tão claramente descrito no texto abaixo, que está na Carta Capital. Fiquei meio pasma porque é ilegal, ponto, e uma pessoa pública que bem defende a legalização – e neste ponto concordo, há de ser defendida – expor daquela forma, tão livre, soou como um “eu já posso, vocês é que estão perdendo seu tempo”. Raso de minha parte, concordo.

Após a leitura do texto abaixo e, ainda, após ter sofrido inúmeros ataques neste mesmo espaço onde compartilho meus pensares opiniáticos quando publiquei a felicidade do espaço das meninas negras na revista Capricho, volto a me manifestar, desta vez munida da responsabilidade de ser anti-racista.

Ora, uma mulher privilegiada branca não pode questionar os alicerces racistas da sociedade onde vive? Que argumentem, pois, e estarei pronta a escutar. Não estou roubando lugar de fala, não estou me apropriando culturalmente e tampouco estou a descrever do ponto de vista de privilegiada: estou me posicionando contra uma enraizada cultura que mantém o racismo vez ou outra escancarado, mas sempre, muito sempre, escondido por detrás de nossas escolhas pessoais.

Como é bom poder transformar e evoluir com informação.

Eu não vou mais me calar frente a estas atitudes e, para me justificar e me movimentar, deixo o texto abaixo. Anti-racismo, esta será uma das bandeiras deste espaço: hora de forma sutil, hora de forma transparente. Aos que desejarem colaborar, sejam bem-vindos.

Gregório Duvivier e o mercado de opiniões

Joanna Burigo, Carta Capital 

Beleza mano fica com Deus
Quando der a gente se tromba, firmeza?
Pena que corre é mil grau
Eu tô feliz com teu sucesso

(Elza Soares, na canção Firmeza?!)

Abro com este trecho da canção de Elza Soares por dois motivos. O primeiro, porque a produção deste texto segue um conselho da escritora Chimamanda Ngozi Adichie.

O segundo, porque também leva em consideração debates sobre políticas identitárias que, frequentemente, empacam na falsa dicotomia do “pessoal versus estrutural”. Voltarei a isso, mas não sem antes contextualizar o que propulsionou esta escrita.

Na semana passada o humorista Gregório Duvivier publicou uma selfie em meio a sua plantação caseira de Cannabis. A saber, a condução deste texto não abarca o debate sobre legalização das drogas, pois há gente mais qualificada do que eu para tecer análises por este viés. Meu foco aqui são dois: as categorias analíticas “gênero” e “raça”, e o contexto das redes sociais, onde discursos sobre ambos tendem ser brutalmente simplificados.

Muita gente viu o compartilhamento da imagem como positivo, uma vez que ao menos ele não é hipócrita ao declarar sua posição. Outro tanto o considerou negativo, já que somente quem tem a segurança de saber poder passar ileso ao cometer um crime – e, a rigor, é crime consumir e plantar maconha no Brasil – pode também contar com a liberdade de brincar com imagens que, de fato, entregam o criminoso.

Faço parte do segundo grupo, e não tenho muito a acrescentar acerca do quão leviano Gregório foi. Poder postar uma imagem daquelas – e sim, isso é sobre “poder” – fala muito alto sobre privilégio.

Ele (e seus defensores) não saber(em) disso talvez seja evidência do pacto narcísico da branquitude, conceito de Maria Aparecida Silva Bento de extrema potência transformadora, já que vai na raiz da constituição sócio discursiva de nossas psiques.

A imagem de Gregório, analisada em contraste com o que sabemos que acontece com negros e negras por conta do porte e consumo de drogas neste País, deixa o caráter estrutural e institucional do racismo bastante explícito.

Ora, a lei é a mesma, mas sua aplicação tende a usar dois pesos e duas medidas. Esses dois pesos e duas medidas são completamente organizados por raça.

A imagem é resultado direto disso que se chama de privilégio branco, este que nos blinda, dentre outras coisas, da violência institucional arranjada por racismo estrutural. Por isso penso que seu compartilhamento, bem como a defesa dele, denotam irresponsabilidade, para dizer o mínimo. E esta defesa pode ser lida quase que como uma autodefesa narcísica, resultante do pacto que relutamos em romper.

Na segunda-feira 5, Gregório publicou em sua coluna na Folha de S.Paulo um texto intitulado “A direita do Facebook é ridícula, a esquerda é insuportável”, em que apresenta sua reação diante das críticas que recebeu por conta do compartilhamento da tal imagem. Tomo elementos dele como evidências do pacto narcísico que nos constitui.

Ao dizer que a esquerda é “insuportável”, a primeira pergunta que me vem à mente é: qual esquerda? Estou escrevendo este texto e participei do debate online muito mais como feminista que se utiliza da ferramenta interseccional – aquela articulada por pensadoras como Kimberlé Crenshaw e Patricia Hill Collins, e que nos convida a analisar injustiças sociais a partir de mais de um eixo de opressão estrutural – do que como esquerda propriamente dita.

Também me intriga o uso da palavra “insuportável”. A escuta ativa e reflexão (auto)crítica que nos levam a suportar os efeitos psíquicos resultantes de duras, porém fundamentadas críticas que recebemos, é o mínimo que se espera de aliados. Muitas das respostas dadas a críticas que se constituem como práticas típicas dos debates travados nas redes sociais se parecem mais com rebates pueris a comentários que maculam a autoimagem de quem os recebe.

Apontamentos de preconceitos ou de atitudes que corroboram com injustiças estruturais não deveriam causar retaliações narcísicas, vergonha paralisante, ou a culpa típica de organizações (de mundo, inclusive psíquicas) pautadas em separações rígidas entre bem e mal, ou certo e errado.

A aposta no conhecimento como potência transformadora, afinal, presume que o aprendizado pode nos mover na direção da tomada de responsabilidade por mudanças sistêmicas.

Ao declarar que as críticas feitas a ele são “insuportáveis”, Gregório contribui para que eu pense como é impressionante nossa capacidade narcísica para relativizar o que, em nós, não damos conta de confrontar.

O que nos leva a outro elemento do texto que assaltou minha atenção: ele ter qualificado seus críticos de “narcisistas da pequena diferença”. Seria cômico se não fosse trágico que seja justamente narcisismo o conceito que Gregório invoca para tentar os desarticular.

Voltando à Elza, Chimamanda e às políticas identitárias, usei o trecho de Soares precisamente para explicitar o quão pouco importa, para a produção desta crítica, a pessoa Gregório. Eu tô feliz com teu sucesso, e as análises que sustentam este texto estão longe de ser produtos de narcisismo. Em um texto de dezembro de 2016 na New Yorker, Adichie salienta que (em tradução livre minha) “agora é hora de chamar as coisas do que elas realmente são, porque a linguagem pode iluminar a verdade tanto quanto pode ofuscá-la”.

Para a escritora nigeriana, e subscrevo, é hora de “resistir à menor extensão nas fronteiras do que é justo”, e de “queimar falsas equivalências para sempre”, pois “fingir que ambos os lados de uma questão estão em plena equidade” é “um conto de fadas”.

Para ela a hora ainda é de enquadrarmos questões de forma diferente – e das que ela levanta, talvez a mais pertinente para este texto seja: o único ressentimento válido é o dos homens brancos?

Gregório ficou ressentido com as críticas, que chamou de “insuportáveis”. O que poderia ser mais (estruturalmente) narcísico do que pensar ser o único ressentido desta história? Gregório entra nesta minha análise não como indivíduo sendo atacado, mas como encarnação da categoria “homem branco”, que os feminismos tanto expõem como sendo um grupo identitário particularmente teimoso.

O ressentimento que resulta de críticas que achamos difícil suportar é puramente subjetivo. Já os sofrimentos causados por racismo e machismo estruturais transcendem o ressentimento; são produtos de perdas concretas de dignidade, de posses, da vida. Um é da ordem da psique, o outro da política. Não há equivalência. Então quem está sendo narcísico?

Encontro isso em James Baldwin (tradução livre minha): “Imagino que uma das razões pelas quais as pessoas se agarram tão teimosamente a seus ódios é porque sentem que, uma vez que o ódio se vai, serão forçadas a lidar com a dor.” Tomei a liberdade de substituir “ódio” por “não consciência da própria responsabilidade por opressões estruturais”. Vejamos como fica:

Imagino que uma das razões pelas quais as pessoas se agarram tão teimosamente à não consciência da própria responsabilidade por opressões estruturais é porque sentem que, uma vez que ela se vai (ou: que a consciência acerca deles chega), serão forçadas a lidar com a dor.”

A dor a que me refiro quando faço essa substituição – e minha interpretação é a de que esta também é a dor a que se refere Baldwin – é a dor de reconhecer o ódio (ou a não consciência da própria responsabilidade por opressões estruturais) como mecanismo constitutivo da própria psique. Não gostamos de enxergar o que em nós é ruim, o que é compreensível. Mas a resolução de traumas exige que lidemos com a dor.

Dói confrontar o próprio racismo, ou o próprio machismo.

Mas dores causadas pelo reconhecimento destes resultam de, e podem ser resolvidas, com operações psíquicas. Já as dores causadas pelo racismo ou machismo resultam de práticas violentas materiais, concretas, reais, e sua resolução depende também de operações políticas. Não existe equivalência possível entre uma e outra dor. Se faço essa análise comparativa, é precisamente para explicitar que não há equivalência.

Precisamos parar de relativizar violências estruturais que ocorrem no bojo do racismo e do machismo. Discursos e imagens que corroboram com mortes evitáveis não devem ser discursos para os quais podemos encontrar justificativas.

E a imagem de Gregório, quer essa tenha sido sua intenção ou não, debocha daqueles que morrem por conta dos dois pesos e duas medidas da aplicação racista da lei.

A linguagem não é imaterial. Ela revela e reverbera injustiças. Precisamos, na concretude do real, olhar os corpos e contar os mortos. Só assim podemos começar a entender questionamentos feitos na seara do simbólico.

Ao contrário da réplica de Gregório, minha tréplica não é pessoal, mas estrutural. E também ao contrário da dele, tem fundamento. Há que se marcar a diferença entre essas, sobretudo porque todas estão em oferta em um mesmo mercado de opiniões: as redes sociais.

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