Economia

As escalas da tragédia previdenciária: A PEC-287 e o fim da aposentadoria rural

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Tadeu Alencar Arrais*, Pragmatismo Político

Feito não há nada. Tudo por fazer”. A conhecida síntese de Rui Barbosa (Barbosa, 1919) ainda refletia o ambiente do Brasil colonial. A elegia do jurista brasileiro bem que poderia, pouco menos de um século após sua publicação, ser assim invertida: “Feito há muito. Tudo por desfazer”. O século XX assistiu, de forma tardia em relação aos países da OCDE, a ampliação do Estado Social. À garantia dos direitos sociais seguiu-se a tímida, mas progressiva, ampliação dos serviços públicos e das redes de assistência social. Mesmo que, historicamente, esses precários ganhos tenham sido, primeiramente, destinados aos trabalhadores urbanos, é forçoso reconhecer que os trabalhadores rurais brasileiros, à revelia da tradição de violência no campo, conquistaram uma parcela, ainda que uma menor parcela, dos direitos sociais. A presença do Estado Social, por meio de financiamento da produção, das políticas de infraestrutura e de assistência técnica, transformou a realidade de centenas de milhares de propriedades rurais brasileiras e, por conseguinte, daqueles que nelas vivem e trabalham. Ao passo que os investimentos governamentais adquiriam capilaridade no campo, outra política social mudaria totalmente sua epiderme. Trata-se da aposentadoria rural, reconhecida como a mais importante política governamental no campo brasileiro. No mês de outubro de 2016, foram emitidos pelo INSS, 9.476.985 benefícios rurais, correspondente ao valor de R$7.480.671,467,89. A cada mês, em um calendário ordenado pelo número do cartão dos beneficiários, milhões de aposentados e aposentadas rurais dirigem-se às Agências da Caixa Econômica Federal, às Casas Lotéricas, aos Caixas Aqui ou mesmo aos terminais de atendimento para receber, cada qual, um salário mínimo. Essa ação ordinária, recorrente, resultado de lutas históricas, transformou-se no motore econômico de centenas de municípios brasileiros e responsável direto pela redução da pobreza rural e urbana. É sobre esse espaço rural, com sua economia concreta, que incidirão, em escalas e com intensidades distintas, os seguintes impactos da PEC-287 (Brasil, 2016):

✅ Na escala da propriedade rural: Resultará em dificuldade para as pequenas e médias propriedades, uma vez que o recurso perene é, com frequência, vertido para o custeio e, não raro, para pequenos investimentos, como renovação das cercas, construção de pequenos açudes, aquisição de equipamentos etc.

✅ Na escala domiciliar urbana: Colocará em risco a segurança familiar de crianças e idosos, uma vez que, em dezenas de milhares de casos, os rendimentos dos assim chamados aposentos rurais constituem a única fonte de renda domiciliar, transformando velhos em arrimos de suas famílias.

✅ Na escala urbana: A retração dos rendimentos terá impacto direto no fluxo de renda, especialmente naqueles setores de varejo que sobrevivem do pequeno crédito, a exemplo das farmácias, lojas agropecuárias, de material de construção e de ferragens, pequenos mercados e supermercados etc.

✅ No escala municipal: A renda da aposentadoria rural reverbera, diretamente, no gasto individual com alimentação e saúde dos idosos, sendo que a retração dessa renda resultará em aumento da demanda por saúde pública na escala municipal e assistência social, o que resultará em maior despesa para os governos municipais.

✅ Na escala regional: A descapitalização dos sistemas produtivos, com efeito direto na queda do volume da produção agrícola e pecuária, implicará em aumento da migração do campo para a cidade, tendo em vista que a busca por trabalho e renda, historicamente, é o maior motivador da migração no território brasileiro.

✅ No escala nacional: Aumento da pobreza no campo e na cidade, o que demandará maior destinação de recursos para assistência social, com aumento da demanda, por exemplo, pelos Benefícios de Prestação Continuada e do Programa Bolsa Família.

A reforma previdenciária faz par com um projeto maior, também representado pela PEC-55, aprovada pelo Senado Federal, que pretende, sob o mantra da austeridade, ajustar as contas públicas brasileiras. Ajuste fiscal é eufemismo para corte de investimentos, o que, historicamente, pune os mais pobres. A deterioração do Estado Social passa por, aparentemente, descapitalizar o Estado Fiscal. No Brasil, como aponta pesquisa de Gobetti e Orair (2016), com base em estudos sobre o Imposto de Renda, apenas 70 mil pessoas concentraram, em 2015, 8,6% da renda nacional. Parece que mesmo aquela aparente solidariedade fiscal, própria da história dos Estados Sociais da OCDE, não funciona em um país cujo rentismo tornou-se sinônimo de meritocracia.

O tripé do Estado Social, a rigor, está sendo desmontado. Investimentos em infraestrutura social, gastos públicos em educação e saúde e as transferências diretas para o cidadão, formam esse tripé social. Os benefícios rurais representam, do ponto de vista orçamentário, uma pequena fração do Orçamento Geral da União e uma fração ainda menor do PIB brasileiro. Na busca da austeridade, ao que tudo indica, a experiência da OCDE não aparece como oportuna. Piketty (2014, p. 466), ao referir-se ao padrão de financiamento público dos sistemas de aposentadoria, especialmente no continente europeu, argumenta:

Apesar de todos os defeitos, e sejam quais forem os desafios que eles enfrentam, o fato é que são esses sistemas de aposentadoria pública que permitem a todos os países desenvolvidos erradicar a pobreza na terceira idade, que ainda era endêmica até os anos 1950-1960. Junto com o acesso à educação e à saúde, as aposentadorias públicas são a terceira revolução social fundamental financiada pela revolução do final do século XX.

Nunca é demais recordar que o pequeno agricultor, tradicionalmente, ao receber o benefício de 1 (um) salário mínimo, não investe em Letras do Tesouro Nacional ou em Fundos de Investimento. Dito de outro modo. O pequeno agricultor não faz poupança com os recursos da aposentadoria rural. Esse valor é destinado, prioritariamente, para a reprodução da vida e para o custeio das pequenas e médias propriedades rurais. As despesas com mão de obra para formação de pastos, combustível para a força motriz, sal para o gado, pagamentos de energia, ferramentas, maquinário leve, compõe a cesta de possibilidades do gasto dos assim chamados, popularmente, aposentos rurais. A outra finalidade é o consumo domiciliar urbano, o que inclui a aquisição de medicamentos e de bens de consumo duráveis e não duráveis para os idosos e suas respectivas famílias que vivem nas cidades, vilas e povoados. Uma parcela das despesas regulares com alimentação e até a aquisição de bens de consumo duráveis da linha branca, tudo tem as mãos calejadas de aposentados.

Como demonstramos no livro Risco social no campo – a reforma previdenciária e o fim da aposentadoria rural, esse recurso é diferencialmente funcional para as economias municipais, a depender do perfil demográfico municipal, como pode ser indicado na figura 01. Para os municípios dos estados da Bahia, do Maranhão, de Minas Gerais e do Ceará foram transferidos em benefícios rurais entre janeiro e outubro de 2015, respectivamente, R$8,47 bilhões, R$5,34 bilhões, R$5,32 bilhões e R$4,15 bilhões. O valor é tão significativo que ultrapassa, em centenas de municípios, o total transferido pelo FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Em 15 estados brasileiros, o valor total dos benefícios rurais acumulado até outubro de 2016 foi superior ao FPM total dos municípios no mesmo período. Para a Bahia, o FPM totalizou R$5,18 bilhões e os benefícios rurais R$8,47 bilhões. No Maranhão, estado com a maior diferença proporcional, o FPM atingiu R$2,31 bilhões e a aposentadoria rural, R$5,34 bilhões.

Figura 1 – Percentual de participação do valor dos benefícios rurais em relação ao total de benefícios previdenciários, por classe populacional dos municípios, em 2015
Fonte: IBGE, 2015; Brasil, 2015.

Mas enganam-se aqueles que imaginam que a aposentadoria rural é importante apenas para os municípios do “interioranos” ou inscritos em lógicas de produção rural. Para as capitais estaduais, eminentemente urbanas, esses recursos não são desprezíveis. O município de São Paulo, ocupou o segundo lugar em maior destinação dos benefícios rurais, com o equivalente a R$241.397.368,00, ficando atrás apenas de Teresina, capital do Piauí. Dos 11 municípios com maior destinação de recursos, cinco são capitais estaduais, além de Brasília. Esses valores, seja do ponto de vista absoluto, seja do ponto de vista relativo, não são desprezíveis para as economias municipais, especialmente para uma economia integrada, com fluxos constantes de mercadorias e serviços entre as regiões do país, potencializando o consumo no Norte e Nordeste do país e, muitas vezes, a produção na Região Sudeste. Nossa economia não é formada por ilhas isoladas, motivo pelo qual qualquer mudança no fluxo de renda monetária regional terá impacto nas demais regiões brasileiras.

Figura 02: Total e valor dos benefícios rurais emitidos, por estado, outubro de 2016
Nota: O total de benefícios inclui, além da aposentadoria por idade, invalidez e tempo de contribuição, a pensão por morte, os auxílios e o salário-maternidade.
Fonte: Brasil, 2016.

Três mudanças inscritas na PEC-287 (Brasil, 2016) são suficientes para comprovar que estamos a tratar, sem eufemismos, do fim da aposentadoria rural. São elas:

a) Aplicação de regras uniformes para trabalhadores urbanos e rurais e exigência de idade mínima de 65 anos.
b) Exigência de contribuição pecuniária, associada ao tempo de trabalho, ainda sem definição dos percentuais aplicados aos trabalhadores rurais.
c) Isonomia das regras para homens e mulheres, o que aumentará em 10 anos a idade mínima para as mulheres.

Essas três mudanças resultam de uma visão negativa do trabalhador do campo, do pequeno produtor, do pescador, do extrativista, enfim, de uma legião de homens e mulheres que sobrevivem da terra, da água e da floresta. Essa visão negativa faz par com uma noção de que os pobres, os pequenos, não são funcionais para as economias. Ao contrário, a análise da economia real demonstra como esses sujeitos, além de produtores, inserem-se, diferencialmente, em cadeias econômicas locais e regionais que sustentam as economias municipais. Com frequência, o espaço rural brasileiro é compreendido a partir de cruzamento de duas narrativas. O campo vazio, de uma lado, marca de uma país urbanizado, e o campo produtivo, de outro lado, marca de um país cujo o agronegócio passa a ser responsável pela eficiência econômica. A despeito desse caduco discurso, é fundamental não perder de vista que a PEC-287 se insinua para um território, segundo dados do Censo Agropecuário 2006 (IBGE, 2006), composto por 5.175.489 estabelecimentos rurais, dos quais 4.367.902 enquadrados como familiares. Nesses estabelecimentos, em 2006, havia 16.567.514 pessoas ocupadas. Pesquisa de Mitidiero Júnior, Barbosa e Hérick de Sá (2016), construída com base nos dados do Censo Agropecuário 2006, foram responsáveis por 42,3% da produção de arroz em casca, 55,4% da produção de batata inglesa, 94,1% da produção de cebola, 88,1% da produção de feijão preto, 98,6% da produção de mandioca, 57% da produção de milho, 73,3% da produção de tomate rasteiro, 39% da criação de bovinos, além do incontestável “monopólio” da produção da horticultura e da produção de leite. Estamos, portanto, penalizando um setor estratégico na produção de alimentos para o mercado interno brasileiro. Ao atingir esses homens e mulheres que produzem comida, estaremos, sem dúvida, comprometendo o abastecimento interno do país. A circulação de moeda, em muitas áreas regiões do país, depende do regime de colheita ou mesmo da comercialização de animais e da disponibilidade de recursos pesqueiros e/ou extrativistas. A equação perversa explícita para o trabalhador rural prevista na PEC-287 é simples: um regime de contribuição perene (regular) para um regime de renda sazonal (irregular). A ideia geral é descapitalizar o pequeno produtor, aquele que vive da terra, o que abrirá espaço para ampliação do latifúndio, tendo como consequência inevitável o esvaziamento do campo. Se o problema fosse receita, seria conveniente, por exemplo, aumentar o valor do ITR que em 2015 atingiu a ridícula soma de R$ 845 milhões de reais (Brasil, 2016b). Relatório da Oxfam Brasil (2016), para o ano de 2010, apontou um valor médio de R$ 1,52 por hectare de ITR. O agronegócio competitivo, moderno, não pode viver sem financiamento do Estado e muito menos sem uma cotidiana renúncia fiscal.

O impacto mais importante da PEC-287, no entanto, refere-se a redução da pobreza rural e da pobreza urbana e, especialmente, àquela localizada na terceira idade, sem esquecer o corte de gênero. Aliás, é forçoso reconhecer que o governo que aí está não esconde seu desprezo pela mulheres. Não podemos esquecer que a extensão da Previdência Social para o campo resultou na extensão de benefícios que vão além da aposentadoria rural, pois inclui as pensões, os auxílios e, fundamentalmente, o salário maternidade. Em 2015, para a clientela rural, foram emitidos 112.633 benefícios de salário maternidade. As restrições de concessão de benefícios rurais atrelados à contribuição pecuniária condenará, sem sombra de dúvida, as mulheres do campo e, com elas, seus filhos recém nascidos. O espectro da fome, associado à pobreza e ao aumento da desigualdade, voltará para o campo brasileiro, repaginando para o Brasil moderno aquelas imagens da década de 1940, traduzidas na tela de Cândido Portinari, no discurso de Josué de Castro e, principalmente, nos versos de João Cabral de Melo Neto.

*Tadeu Alencar Arrais é professor associado do IESA/UFG e colaborou para Pragmatismo Político.

Referências

ARRAIS, Tadeu Alencar. Risco social no campo. A reforma previdenciária e o fim da aposentadoria rural. Goiânia: IU (UFG), 2017. In: https://www.cegraf.ufg.br/up/688/o/book_risco_social.pdf.
BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. Fundação Casa de Rui Barbosa. p. 367-448, 20 mar. 1919. Conferência. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/p_a5.pdf. Acesso em: 18 nov. 2016.
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