Governo

Um direito a menos

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Cabe destacar que a greve é um direito político, que inclusive teve relevância no processo de redemocratização do país

Cássio Garcia Ribeiro*, Pragmatismo Político

Os magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram, em sua maioria, que o poder público deve cortar pontos dos servidores em razão de greve. Vejamos os argumentos utilizados por alguns dos ministros que votaram a favor dessa medida: 1º) o Ministro Gilmar Mendes, para justificar seu voto a favor do corte de ponto propõe o seguinte questionamento: “É razoável a greve subsidiada? Alguém é capaz de dizer que isso é licito? ”; 2º) o Ministro Luiz Fux destacou a importância da decisão do STF nesse momento turbulento que o país vive, contexto no qual se avizinham deflagrações de greves; 3º) o Ministro Luís Roberto Barroso foi enfático ao explicitar seu entendimento sobre a matéria em análise: “O poder público não apenas pode, mas tem o dever de cortar o ponto. Esse entendimento não viola o direito de greve”; 4º) o relator do Recurso Extraordinário (RE) que discute a constitucionalidade do desconto dos dias paradas em razão de greve de servidor, Ministro Dias Tofolli, utilizou o exemplo dos prejuízos causados à sociedade pelos movimentos paredistas nas universidades públicas. “Quantas vezes as universidades não conseguem ter um ano letivo completo sequer por causa de greves?[…] O acórdão recorrido quer subsidiar a greve”.

Vamos por partes:

1º) É importante lembrar que a grande maioria dos servidores públicos recebe somente salário. São pouquíssimas as categorias privilegiadas no setor público brasileiro, que além dos salários recebem subsídios do Estado sob a forma de auxílio moradia, por exemplo. Ademais, tratar o recebimento de salários durante as greves como uma ilicitude é uma interpretação do Ministro Gilmar Mendes, certamente não compartilhada por muitos outros juristas. Inclusive seu colega de STF, o Ministro Marco Aurélio Mello, apresenta uma visão diametralmente oposta à interpretação de Mendes acerca do assunto em questão. Para Mello, o corte nos salários em decorrência da participação em movimento grevista representa uma punição ao cidadão que exerce seus direitos.

2º) A respeito da interpretação do Ministro Fux sobre a contribuição do STF ao país ao aprovar o corte de ponto dos grevistas, cabe a seguinte pergunta: na percepção do excelentíssimo Ministro é papel do STF barrar as greves que surgirão para se opor, por exemplo, à aprovação da PEC 55 (antiga 241) e seus reflexos sobre os serviços públicos brasileiro? Vejam, estamos diante de um governo que não passou pelo crivo dos eleitores e que quer aprovar medidas de longo prazo (20 anos como é o caso da PEC 55) sem um debate mais profundo com a sociedade a respeito dos impactos dessas medidas. Nada mais natural (e eu diria que é desejável, é quase dever de ofício) que os servidores públicos se oponham a esse flagrante ataque à Constituição e ao próprio Estado. Nesse caso, o mecanismo mais contundente que está ao alcance dos servidores públicos, seja pelos constrangimentos que cria, seja pela visibilidade que enseja às pautas e demandas existentes é justamente a greve. Ademais, considerando as greves que se “avizinham” frente ao arrocho salarial a que serão submetidos os servidores públicos, cumpre ressaltar que nem toda categoria de trabalhador tem a prerrogativa de poder negociar diretamente com aquele que pode autorizar ou não o aumento de seus vencimentos.

3º) Quanto ao posicionamento do Ministro Luís Roberto Barroso, a medida tomada pelo STF de fato não está proibindo a realização de greve por parte dos servidores públicos. Todavia, sejamos razoáveis, ela traz um inequívoco abalo ao exercício desse direito, como assevera com propriedade seu colega de Tribunal, o Ministro Marco Aurélio Mello, para o qual “O exercício de um direito não pode implicar de início prejuízo, e prejuízo nessa área sensível que é a área do sustento próprio do trabalhador e da respectiva família”.

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4º) Especificamente sobre a greve de docentes em universidades públicas, é preciso esclarecer alguns pontos: as aulas não ministradas durante a greve são repostas. Após o término do movimento paredista, ajusta-se o calendário para repô-las, buscando minimizar os prejuízos aos alunos em relação aos conteúdos que restaram para a conclusão das disciplinas. Além disso, o custo da greve é alto não apenas aos alunos, mas também aos docentes, seja pelos impactos que ela traz nos nossos calendários (exigindo o cancelamento de viagens previstas para as férias e os problemas decorrentes do convívio com dois calendários paralelos aos professores inseridos na pós-graduação), seja pelo clima de animosidade que cria entre grupos de professores e alunos a favor e contrários ao movimento paredista. Por fim, francamente, dizer que o acórdão subsidiará as greves. É justamente o contrário.

Cabe destacar que a greve é um direito político, que inclusive teve relevância no processo de redemocratização do país. Como tal, num momento em que se decide o futuro do país dentro de gabinetes e salas pouco representativas, a greve é um dos poucos instrumentos legítimos de posicionamento político do cidadão. Na condição de guardiões da Carta Magna e considerando seu importante papel no sistema de pesos e contrapesos da democracia brasileira, os ministros do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro prestariam um serviço realmente de relevo à sociedade caso avaliassem temas como: 1º) a constitucionalidade do novo regime fiscal atrelado à PEC 55, considerando os gravíssimos impactos na prestação de serviços públicos e à sociedade brasileira decorrentes de sua aplicação; 2º) a legalidade e os eventuais abalos a direitos individuais consagrados na Constituição de 1988 em virtude das medidas adotadas na operação lava-jato como o monitoramento dos representantes dos acusados, a divulgação de escutas gravadas e o uso de prisão preventiva para forçar os acusados a realizarem delação premiada; 3º) o mérito do processo de impeachment amparado no argumento de que as pedaladas fiscais representam crime de responsabilidade, cuja gravidade justifica a anulação do maior contrato existente em uma democracia, ou seja, o voto popular.

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*Cássio Garcia Ribeiro é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e colaborou para Pragmatismo Político.

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