Redação Pragmatismo
Racismo não 16/Jun/2016 às 18:04 COMENTÁRIOS
Racismo não

Por que a única participante negra do Masterchef Brasil provoca tanto ódio?

Publicado em 16 Jun, 2016 às 18h04
Gleice MasterChef vitima racismo negra pobre ódio preconceito
Gleice Simão, participante do MasterChef Brasil 2016 (reprodução)

Stephanie Ribeiro, Brasil Post

Assim como muitos participantes negros de reality shows, Gleice Simão, participante do MasterChef, é odiada pelo público. Nesta última semana ela foi tão ofendida que chegou a ser até trending toppic no Twitter.

A moça é simples, simpática e amada pelos outros participantes do reality show. Características essas que geralmente contam como positivas. Então porquê ela é tão odiada pelo público do programa?

Qualquer pessoa negra que passa a viver uma realidade diferente da que outras pessoas estão acostumadas, e que por sinal é mais elitizada, terá dificuldades. Isso não quer dizer que é justo taxar a pessoa de vitimista ao se notar essas dificuldades. Contudo, é o que fazem com Gleice.

Mesmo o Brasil sendo um País de extremas desigualdades sociais (não precisamos nem de dados é só preciso passar um dia em uma sala de aula de uma grande universidade nacional e será evidente que negros estão em menor quantidade ou não existem, nesses espaços), o brasileiro é extremamente aquém ao que realmente significa racismo e quais lugares e chances uma pessoa negra está e tem em sociedade.

Então me desculpe: se Gleice quisesse se sentir como vítima, ela teria total direito de fazê-lo, pois ela é! Em um País em que a maioria da população negra é pobre e mulheres negras como ela correspondem aos níveis mais baixos nos acesso e condições sociais e de saúde pública, ela é uma vítima das circunstâncias sociais. Só não acredita nisso, quem, em um fundo pautado pela socialização da “branquitude”, acredita em meritocracia.

Gleice é simples, mulher, negra e de origem pobre. Ela realmente não teve acesso a todos os temperos e nem provou pratos de vários restaurantes conhecidos e renomados. O que não implica que ela não se esforça ou não mereça estar no MasterChef Brasil. Além do mais, ela é muito jovem em relação aos outros participantes, e tende a lidar com a pressão de outra forma.

Porém o que vejo são pessoas desconsiderando isso, ignorando que perder um irmão assasinado na porta de casa não é fácil e superável em poucos dias. Quantas pessoas da sua família já foram assassinadas demonstrando a vulnerabilidade social que alguns estão expostos para você achar que isso não é um fator que desestabiliza uma jovem de 22 anos?

É fácil dizer que ela é chorona e fazer piadinha sobre isso. É muito “engraçado” estar odiando Gleice Simão, porque é muito fácil odiar uma mulher negra pobre que viu o irmão morrer. Difícil, mesmo, é questionar porque Livia Cathiard participante do mesmo reality e quase 10 anos mais velha, chorava em vários episódios e estava sempre para baixo, porém não recebeu repudio, e muito menos ódio do público. Mesmo que ela, em vários momentos, tenha tido um desempenho abaixo do de Gleice.

Mas fácil ainda é acreditar que todos os participantes estão em pé de igualdade quando o Leonardo Young tem um irmão chef de um restaurante conhecido e faz curso de culinária. É complexo dizer que se ele ganhar foi por mérito, pois teria tido as mesmas chances.

Bagagem cultural, intelectual e informação requerem tempo. E tempo é dinheiro. Nem todos podem se disponibilizar com facilidade. Gleice Simão tem talento, esse que precisa ser lapidado e é isso que o público brasileiro quer negar.

Se ela não estivesse incumbida reproduzir a sobremesa de tapioca do restaurante Dalva e Dito, de ninguém menos que o chef Alex Atala, ela não teria feito um prato saboroso e elogiado, mesmo com todos os problemas que sua equipe teve naquela prova.

Ou ninguém lembra disso?

A reprodução do prato da Paola Carossella que ela fez estava perfeita, porém ninguém lembra disso na hora de dizer que ela não se esforça e não tem méritos em estar nessa competição.

O problema do público com Gleice Simão começou quando ela ficou e Gabriella Palinkas foi eliminada por não ter cumprido as regras. E nesse momento a moça eliminada no auge da sua branquitude disse: “Eu sai para você ficar”.

Não querida, você saiu porque não cumpriu as regras e a Gleice cumpriu. Sendo assim, nada mais justo.

O fato não aceito pela população que se julga mais jurada que qualquer um dos chefes renomados do programa, é que dizem que a moça é queridinha e, apenas por isso continua no programa.

Desculpa, é só uma mulher negra ser bem tratada que as pessoas já dizem que ela é vista como “café com leite”?

É só uma mulher negra ser elogiada que as pessoas questionam a legitimidade dos jurados?

É só uma mulher negra ter um jeito mais tímido que já dizem que ela não se esforça, então não merece?

Uma mídia nacional chegou veicular a seguinte matéria: “De frente para a TV: A vitória do vitimismo de Gleice no ‘MasterChef’“. E a jornalista provavelmente se sentiu genial ao escrever tal atrocidade e dizer que Mara, uma das poucas ganhadoras do BBB e que tinha origem pobre, só ganhou por vitimismo também.

É evidente que temos uma questão de classe e de raça.

É lamentável como na ignorância as pessoas deixam evidente sua perseguição com mulheres negras, de origem pobre e com realidades que o brasileiro acha que não existem, quando, na verdade, são mais comuns do que qualquer outra.

Mara é uma das poucas vencedoras do BBB que aplicou bem seu dinheiro, conseguiu dar conforto e bem estar para família e não precisa ficar fazendo atrocidades midiáticas para ter um pingo de visibilidade e assim alguma renda, igual a outros ex-vencedores/participantes.

Gleice, assim como Mara, não tem sobrenome rebuscado, não tem irmão chef de cozinha, e nem dinheiro para experimentar pratos e ter leque de opções na hora de criar menus. Mas ela tenta! E representa uma parcela da população que muitas vezes não tenta, pois na ausência de se ver em determinados espaços acredita que não é boa o bastante.

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Parcela esta que adequa suas defesas quando se faz necessário, afinal, segundo o próprio discurso méritocrático, se Gabriela tinha as mesmas chances e mais talento que Gleice, ela deveria ter voltado na repescagem.

O que vimos foi a Gleice que todo mundo julga “não ter aptidão”, fazendo o prato mais diferente e inteligente da noite. Inclusive o único que esteticamente se diferenciava dos demais. Sendo a primeira a ser chamada para subir de volta ao mezanino, dessa vez, Gabriela saiu para o Fernando ficar.

E foi tarde. Suas habilidades na cozinha não eram nada extraordinárias. Eu não entendo toda a mobilização em prol de se fazer justiça para essa moça. E principalmente não consigo lidar com o fato dela ter sido eliminada duas vezes por seus erros e as pessoas insistirem que Gleice que acabou com a carreira culinária dela.

Mohamad Hindi Neto, um dos primeiros participantes do Masterchef Brasil, era extremamente ruim. Não tinha pratos-destaque, era ruim nas provas coletivas, vivia ficando na berlinda, mesmo com um leque de pratos rebuscados ficava sempre atrapalhado e não executava nada bem. E mesmo assim ele só saiu já no fim do programa. Ganhou perfil em revistas para adolescentes, tem várias matérias mostrando seu sucesso com o público, ele era o típico “jovem atrapalhado” que soava “engraçadinho”.

Porque a receita mal executada e gostosa do Mohamad era legal e divertida, e uma trufa da Gleice com os mesmos problemas é motivo para o twitter todo se mobilizar em repudio a ela?

Por que odiamos Gleice e não odiamos Mohamad?

E ressalto para os que dizem que Gleice chora demais: não só ela não chora demais, como outros participantes tiveram comportamentos muito mais exagerados em reality shows e não foram repudiados. A própria Ana Paula do BBB teve atitudes aquém do normal, chegando a agredir um participante. Contudo, tudo bem ela ser daquele jeito, mesmo que um ano antes a Angélica fosse uma versão sua negra, e tenha sido taxada como desnecessária, chata e foi repudiada pelo público. Por fim teria recebido ofensas racistas, assim como Adélia sofreu, mostrando o nível de racismo do público nacional desses programas.

As pessoas dizem que não aceitam e se julgam as mais conhecedoras sobre realitys shows, portanto lanço o desafio. Pesquisem e respondam: de todos os realitys nacionais que vocês assistem, quantos já foram ganhos por pessoas negras?

Me tragam no mínimo 10 vencedores negros. Pode ser BBB, Casa dos Artistas, A Fazenda, Masterchef, The Voice. Me digam realmente se o número de candidatos negros vencedores são equivalentes ao número de pessoas brancas que ganharam. Me respondam porque no País onde 26% da população é de mulheres negras, a Gleice causa ódio e torcida contra sua manutenção no programa? Se analisarmos criticamente, mulheres como ela, aqui no Brasil, não ganham quase nunca programas baseados no entretenimento.

Vejam quantas pessoas com perfis como o de Mohamad, Gabriela, Ana Paula ganham amor e torcida à favor. Enquanto pessoas com perfis mais parecidos com o de Gleice, Mara e Angélica, só recebem ódio.

Podem dizer que é um assunto banal falar de realitys. Até seria se esses realmente não evidenciassem o que só para opressores é mascarado. Pensem nisso antes de lerem esse textos e acharem que no fundo não há racismo.

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