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Lula, os promotores de São Paulo e o atropelo grotesco da lei

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Na ânsia de prender Lula, promotores do Ministério Público de São Paulo atropelaram a lei. Além das gafes, vários trechos do documento apresentado por Cassio Conserino, José Carlos Guillem Blat e Fernando Henrique de Moraes têm demonstrações nítidas de posicionamento político

Marcelo Auler

Na corrida para ver quem primeiro leva o troféu de processar e pedir a prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, o Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE) atropelou a lei ao puxar a brasa para a sua sardinha. Ao final de 102 laudas da denúncia apresentada nesta quinta-feira (10/03) à imprensa em uma coletiva – provavelmente na ânsia de incentivar as manifestações de domingo contra o PT e o governo – os promotores paulistas Cássio Roberto Conserino, José Carlos Guillem Blat, Fernando Henrique de Moraes Araújo imputaram ao ex-presidente dois crimes: falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal ) e lavagem de dinheiro por ocultação do imóvel (artigo 1º, caput’ da Lei 12.683/12). Já Marisa Letícia, mulher, e Fabio Luiz, filho do ex-presidente, responderiam pelo crime de lavagem de dinheiro.

No caso da lavagem de dinheiro, por mais esforço que tenham feito, a denúncia apresentada deixa a desejar e isso se verificará mais adiante. A questão maior é que o crime que poderia ser imputado a Lula pelo que foi descrito na acusação apresentada – fazer falsa afirmação na declaração de renda de 2015, ano base de 2014, “consignando falsamente a propriedade de uma “cotaparte do imóvel 141” do edifício Salinas, do condomínio Solaris, que nunca lhe pertenceu” – não é falsidade ideológica como querem os três acusadores, mas sim um crime federal. Ao pé da letra, trata-se de “omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”, previsto no artigo 1º da LEI Nº 8.137, DE 27 DE DEZEMBRO DE 1990 – que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

Além da questão de denunciá-lo por um crime federal junto à Justiça estadual, os promotores deram uma demonstração nítida de posicionamento político ao anunciarem um pedido de prisão preventiva no qual criticam adeptos do Lula por se manifestarem a favor deles, mas classificam de democratas os participantes de manifestações contrárias ao ex-presidente e a favor dos próprios promotores:

“os apoiadores e fãs do denunciado e ex Presidente da República LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA compareceram na frente da sede do Complexo Judiciário Criminal da Barra Funda e iniciaram confusão, com agressões a outros manifestantes e pessoas que se encontravam de forma democrática no local.”

Avançando mais ainda o sinal, os promotores que assinaram pedido de prisão de Lula esqueceram que pela Constituição não têm poderes de analisar nenhum gesto da presidente da República. Tal análise cabe ao Supremo Tribunal Federal e ao Procurador Geral da República. Mas, na petição que apresentaram na condição de representantes da instituição Ministério Público, e não como cidadãos/eleitores, criticaram as atitudes de Dilma Rousseff ao apoiar o ex-presidente e visitá-lo, em solidariedade, na sua residência em São Bernardo. Foi um claro e nítido posicionamento político certamente para ajudar na convocação das próximas manifestações.

Da mesma forma, não é da atribuição do Ministério Público Estadual, mas sim do Ministério Público Federal, analisar crimes tributários, pois cabe à Justiça Federal apreciar tais questões. Mesmo que venha a existir a lavagem de dinheiro, o crime contra a ordem tributária atrairá o caso para a Justiça Federal. Corretamente, o MPE deveria ter pedido ao juízo que encaminhasse esta parte da investigação contra Lula para distribuição a um juiz federal que, por sua vez, encaminhará à Procuradoria da República de São Paulo a análise do caso. Mas isto lhe tiraria das mãos o troféu de processar o ex-presidente e de pedir a sua prisão com uma argumentação meramente política. Ou seja, jogaram para a platéia.

Acrescente-se ainda que a qualquer estagiário de Direito não deve assustar uma acusação de falsidade como esta. Facilmente aponta-se um erro material, que não afeta o conteúdo da Declaração de Renda. O valor realmente pago pela cota-parte, seja da unidade 1, 2 ou 3, é o que interessa à Receita. A declaração informa que por esta cota-parte o casal investiu R$ 179.650,80. Não houve sonegação do valor. Mas era uma cota-parte que podia ou não ser exercida. Não foi.

Na declaração de renda de Lula, o motivo da falsidade ideológica: ele cita o apartamento 141 (reprodução)

A Lavagem de dinheiro  

Por mais que os promotores queiram imputar a Lula, sua mulher Marisa e ao filho do casal, Fábio, o crime previsto no artigo 1º da Lei 12.683/12, – ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa – há uma questão básica não respondida por eles.

Lula e Marisa reconhecidamente faziam parte da Cooperativa através de uma cota-parte. Pagaram por um apartamento e quando instados a definirem se desistiriam ou não da compra, no momento em que a Bancoop faliu e a OAS assumiu, simplesmente não se manifestaram. Logo, deixaram de ter direito à devolução do dinheiro naquele instante e continuaram com o direito de optar por uma unidade.

O Ministério Público não conseguiu documentos mostrando que o tríplex pertence a Lula, apenas depoimentos de pessoas que ouviram dizer que ele ia morar lá. Como acusá-lo de ocultação de propriedade?

Ocultação do que não possui

Mas como o próprio Instituto Lula afirmou, “quando o empreendimento Mar Cantábrico foi incorporado pela OAS e passou a se chamar Solaris, os pagamentos foram suspensos, porque Marisa Letícia deixou de receber boletos da Bancoop e não aderiu ao contrato com a nova incorporadora”. Trata-se de uma questão particular entre eles e a OAS. Continuavam donos de uma cota-parte de um apartamento no qual investiram os R$ 179 mil, mas pararam de pagar o restante do valor do imóvel. Pode ter sido este o motivo de perderem a unidade 141, vendida a outro cooperado.

Na apuração do Ministério Público, apesar de Marisa parar de pagar, a OAS decidiu destinar ao casal um tríplex. Isto se sabe verbalmente, não há documentos registrando nada. Se existe, não foi descoberto pelos promotores que, para suprir esta falta, buscaram ao máximo depoimentos de possíveis testemunhas para tentar provar que aquele tríplex era destinado à família do ex-presidente. Testemunharam, por ouvir dizer, ou por terem visto o casal visitando-o. Ninguém apresentou um documento formal de promessa de compra e venda. Um contrato de gaveta, que fosse.

A OAS bancou a reforma na qual, segundo as testemunhas, Marisa Letícia palpitou. Como os promotores afirmam na acusação, após reportagem de O Globo, Lula e Marisa desistiram do imóvel. Isto, aliás, foi afirmado pela defesa do ex-presidente em documento já divulgado.Em nota, o Instituto Lula alegou que a família desistiu de utilizar a cota para adquirir um dos imóveis disponíveis no condomínio porque “as notícias infundadas, boatos e ilações romperam a privacidade necessária ao uso familiar do apartamento”. Ou seja, desistiram de qualquer imóvel, inclusive o triplex que poderia estar sendo preparado para eles, mas não lhes pertencia.

Na denúncia, porém, os promotores falam desta desistência de uma forma bastante pejorativa:

“Foi tudo cuidadosamente preparado para a família presidencial, contudo, não contavam com a matéria do jornal “O Globo”, que acabou frustrando os planos dos denunciados, que tiveram de sair às pressas do imóvel deixando para lá portentosa e cara mobília tornando inexequível uma maior fruição da terceira etapa da lavagem de dinheiro”.

“Sair às pressas”? Quando? Como? Afinal, o casal não tinha nem se mudado, continuava como continua morando em São Bernardo do Campo. “Deixando para lá portentosa e cara mobília”? Os únicos móveis que se soube que estavam ali eram o armário de cozinha e uma geladeira que, segundo as denúncias do Ministério Público, foram comprados por empreiteiras. Logo, não pertencem ao casal. Logo, não se pode falar em “deixando para lá portentosa e cara mobília”.

De tudo isso se conclui que os promotores paulistas não conseguiram provar o crime de lavagem de dinheiro através da ocultação de patrimônio, até porque não existe um patrimônio a ser oculto pelo ex-presidente Lula. Poderia até vir a existir no futuro, da forma mais variada possível: venda, doação, aluguel, permuta, empréstimo. Qualquer delas que não fosse a vendapelo preço justo, levaria ao questionamento do interesse da OAS em repassá-lo à família Lula da Silva. Mas, hoje, a realidade é que o imóvel, por escritura, está em nome da construtora e não é usado pela família Lula da Silva. Se está em nome dela e se o Ministério Público não conseguiu documento provando que este patrimônio foi incorporado pela família do ex-presidente, como falar em ocultação de bens? lavagem de dinheiro?

Um ato político

Ou seja, a denúncia apresentada nesta quinta-feira (10/03) pelos promotores paulista, primeiro esbarra na questão de tratar a simples citação de uma unidade de um prédio, que nem era apontada como propriedade, mas sim como cota-parte, como falsidade ideológica. Ainda que se considere falsidade, ela não seria tratada pelo artigo 299 do Código Penal, por se um crime previsto na lei que regulamenta sonegação fiscal, logo, crime federal que deve ser analisado pela Procuradoria da República. Por fim, faz a acusação de lavagem de dinheiro por meio de ocultação de um patrimônio que não pertence a quem se acusa de ocultá-lo.

Por mais que os promotores neguem qualquer conotação ideológica ou partidária no anúncio da denúncia nas vésperas de novas manifestações convocadas para domingo contra o governo do PT e contra Lula, é patente esta ligação. Mais patente fica ainda quando eles revelam o pedido de prisão preventiva do ex-presidente em nome da ordem pública. Uma tentativa de responsabilizá-lo pelos conflitos que ocorreram na porta do fórum da Barra Funda e na porta do aeroporto de Congonhas.

Torna-se algo curioso. Promotores, procuradores, juiz e policiais federais desenvolvem operações mal calculadas e, quem sabe, mal intencionadas, provocam reação de eleitores e, por fim, culpam o investigado por tais atos. No caso em tela, além de acusarem o ex-presidente por uma ocultação de bem que não provaram ser dele, querem responsabilizá-lo pelos tumultos gerados por iniciativas das quais não foi responsável, como a sua condução coercitiva para depor, uma denúncia mal feita que nada prova e o pedido de prisão preventiva sem sustentação. Ou seja, jogaram lenha no braseiro. Mas, se houver fogo não assumirão a responsabilidade. Porão a culpa no “investigado”.

Leia a nota divulgada pelo advogado de Lula:

“A íntegra do pedido de prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgada pela mídia revela que os Promotores de Justiça Cassio Roberto Conserino, José Carlos Blat, Fernando Henrique de Moraes Araújo fundamentaram tal requerimento principalmente nas seguintes alegações:

1) Lula teria feito críticas à atuação do Ministério Público e a decisões judiciais;

2) Lula “poderia inflamar a população a se voltar contra as investigações criminais”;

3) Lula usou de seus “parceiros políticos” para requerer ao CNMP medida liminar para suspender a sua oitiva durante as investigações;

4) Lula se colocaria acima da lei.

Essa fundamentação claramente revela uma tentativa de banalização do instituto da prisão preventiva, o que é incompatível com a responsabilidade que um membro do Ministério Público deve ter ao exercer suas funções.
Buscou-se, de fato, amordaçar um líder político, impedir a manifestação do seu pensamento e até mesmo o exercício de seus direitos. Somente na ditadura, quando foram suspensas todas as garantias do cidadão, é que opinião e o exercício de direitos eram causa para a privação da liberdade.

Lula jamais se colocou contra as investigações ou contra a autoridade das instituições. Mas tem o direito, como qualquer cidadão, de se insurgir contra ilegalidades e arbitrariedades. Não há nisso qualquer ilegalidade ou muito menos justificativa jurídica para um pedido de prisão cautelar.

Os promotores também não dispõem de um fato concreto para justificar as imputações criminais feitas ao ex-Presidente Lula e aos seus familiares. Não caminharam um passo além da hipótese. Basearam a acusação de ocultação de patrimônio em declarações opinativas que, à toda evidência, não podem superar o título de propriedade que é dotado de fé pública.

O pedido de prisão preventiva é a prova cabal de que a violação ao princípio do promotor natural — reconhecida no caso pelo Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP — produz resultados nefastos para os envolvidos e para toda sociedade.

Por tudo isso, espera-se que a Justiça rejeite o pedido, mantendo-se fiel à ordem jurídica que foi desprezada pelos promotores de justiça ao formularem o pedido de previsão cautelar do ex-Presidente Lula”.

Cristiano Zanin Martins

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