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Antropólogo derruba a ideia de que no Brasil há democracia racial

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Doutor em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) reforça que o Brasil possui um quadro ‘gritante’ de discriminação. Acha exagero? Não é o que mostram os números. Professor se aprofunda na crença de setores da sociedade brasileira de que ‘não existe racismo’ por aqui e de que tudo não passa de ‘vitimização’

O professor Kabengele Munanga (divulgação)

Thiago de Araújo, BrasilPost

Ainda hoje há, no Brasil, quem negue a existência do racismo. Discussões sobre questões raciais não surpreendem o antropólogo congolês Kabengele Munanga. Aos 73 anos, o doutor em Ciências Sociais e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) sempre reforça que o Brasil possui um quadro ‘gritante’ de discriminação. Acha exagero? Não é o que mostram os números.

“Os dados mostram que, à véspera do Apartheid, a África do Sul tinha mais negros com diploma de nível superior do que no Brasil de hoje”, afirmou Munanga, em audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010. O debate girava em torno das políticas de acesso ao ensino superior. Os opositores anunciavam que o País estava prestes a viver uma ‘guerra racial’. Não foi o que se viu.

“Não houve distúrbios, linchamentos raciais em nenhum lugar. Não apareceu nenhum movimento ‘Ku Klux Klan’ à brasileira”, comentou o antropólogo. “O que se busca pela política de cotas para negros e indígenas não é para terem direito às migalhas, mas sim para terem acesso ao topo em todos os setores de responsabilidade e de comando na vida nacional onde esses dois segmentos não são devidamente representados, como manda a verdadeira democracia”.

Mas e a tão conhecida ‘democracia racial’, nascida pelas mãos de Gilberto Freyre? Antes de mais nada, é preciso compreender do que se trata o preconceito. O professor Munanga assim define o termo:

“Preconceito como o próprio termo diga preconceito é uma ideia preconcebida, um julgamento preconcebido sobre os outros, os diferentes, sobre o qual nós mantemos um bom conhecimento. E o preconceito é um dado praticamente universal, pois todas as culturas produzem preconceito. Não há uma sociedade que não se define em relação aos outros. E nessa definição acabamos nos colocando em uma situação etnocêntrica, achando que somos o centro do mundo, a nossa cultura é a melhor, a nossa visão do mundo é melhor, a nossa religião é a melhor, e acabamos julgando os outros de uma maneira negativa, preconcebida, sem um conhecimento objetivo. Isso é o preconceito, cuja matéria prima são as diferenças, sejam elas de cultura, de religião, de etnia, de raça no sentido sociológico da palavra, de gênero, até de idade, as econômicas. Todas as diferenças podem gerar preconceitos”.

Na mesma entrevista, concedida à Boa Vontade TV, o congolês se aprofundou na crença de setores da sociedade brasileira de que ‘não existe racismo’ por aqui. De que tudo não passa de ‘vitimização’. Nada disso é surpreendente, de acordo com ele.

“Cada país que pratica o racismo tem suas características. As características do racismo brasileiro são diferentes. Por que o brasileiro não se considera racista ou preconceituoso em termos de raça? Porque o brasileiro não se olha no seu espelho, nas características do seu preconceito racial. Ele se olha no espelho do sul-africano, do americano, e se vê: ‘olha, eles são racistas, eles criaram leis segregacionistas. Nós não criamos leis, não somos racistas’. Tem mais: tem o mito da democracia racial, que diz que não somos racistas”.

Nem mesmo pessoa flagrada em um ato de racismo vai admitir. E isso é esperado, pelo menos no Brasil.

“Esse mito (da democracia racial) já faz parte da educação do brasileiro. E esse mito, apesar de desmistificado pela ciência, a inércia desse mito ainda é forte e qualquer brasileiro se vê através desse mito. Se você pegar um brasileiro até em flagrante em um comportamento racista e preconceituoso, ele nega. É capaz dele dizer que o problema está na cabeça da vítima que é complexada, e ele não é racista. Isso tem a ver com as características históricas que o nosso racismo assumiu, um racismo que se constrói pela negação do próprio racismo”.

Recentemente, foi acalorada a discussão a respeito da Base Nacional Comum Curricular (BNC) gerou muita discussão – e críticas –, sobretudo no que diz respeito ao ensino da história, que passaria a privilegiar temas envolvendo Brasil, Américas e África, em detrimento à Antiguidade Clássica e à Idade Média. Mais uma vez, o movimento parece esperado, de acordo com o que Munanga pensa acerca da presença africana e negra no contexto nacional.

“O brasileiro gostaria de ser considerado como europeu, como ocidental. Isso está claro no sistema de educação. Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar onde se forma o cidadão, onde se ensina uma profissão. Há escolas que sabem lidar com os dois lados da educação: ensinar a cidadania e a profissão. A história que é ensinada é a história da Europa, dos gregos e dos romanos. No entanto, quem são os brasileiros? Os brasileiros não só descendentes de gregos e romanos, de anglo-saxões e de europeus. São descendentes de africanos também, de índios, e descendentes de árabes, de judeus e até de ciganos. E se olharmos o nosso sistema de educação, onde estão esses outros povos que formaram o Brasil? Então, há um problema no Brasil, além de essas pessoas serem as maiores vítimas da discriminação social, no sistema de educação formal elas não se encontram, elas são simplesmente ocidentalizadas, são simplesmente embranquecidas.

Se colocarmos as questões: “quem somos, de onde viemos e por onde vamos?”, vamos ver que o Brasil nasceu do encontro das culturas, das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram deportados e dos próprios imigrantes europeus de várias origens. Comemoramos os cem anos da imigração japonesa, e fala-se mais dos cem anos da imigração japonesa do que dos 600 anos da abolição. Não tenho nada contra isso, mas fala-se muito pouco da abolição. Então, se queremos saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes, aqueles povos que formaram o Brasil, alguns dizem que somos um país mestiço, mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já que não queremos reconhecer a diversidade das coisas, suponhamos que sejamos todos mestiços, vamos pelo menos estudar as raízes da nossa mestiçagem, isso faz parte da nossa cultura. Mas o brasileiro não se incomoda, o brasileiro quer se ver como europeu ocidental, parece que o brasileiro não se enxerga”.

Há avanços, mas o caminho é longo para que a diversidade prevaleça, assim como a igualdade de oportunidades no Brasil. Para o professor da USP, cada preconceito demanda o seu próprio antídoto. No caso do racismo, é ilusório esperar que ele venha pelo caminho das leis. Não, o campo de combate está sediado na sala de aula, desconstruindo mitos até mesmo para quem é vítima neste processo e aceita tal condição.

“Preconceitos são muitos, por isso você não pode ter uma formula geral para combater todos os preconceitos. Em primeiro lugar, você não se combate com a lei, que combate os comportamentos concretos que podem ser observados, flagrados e punidos. Os preconceitos são em um terreno em que você não combate com a leis, por isso a educação é importante. A educação é um dos caminhos para combater os preconceitos, não as leis”.

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