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Branco sai, preto fica: o melhor filme do ano

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Branco sai, preto fica é a prova cabal que o melhor cinema brasileiro é aquele que faz de sua própria escassez de recursos elemento de invenção e criação.

Filme: Branco sai, preto fica (Imagem: Pragmatismo Político)

José Geraldo Couto, Outras Palavras

Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós, é um filme extraordinário na acepção plena da palavra: você não encontrará algo parecido em nenhuma cinematografia. Já o comentei brevemente quando foi exibido – e consagrado – no festival de Brasília do ano passado. Agora que está entrando em cartaz em várias cidades brasileiras, vale a pena voltar a ele.

Mais do que borrar a fronteira entre documentário e ficção, Branco sai a subverte “a partir de dentro”, ao expor o que há de ficção no que chamamos de realidade e o que há de realidade na mais desvairada fabulação. No centro de tudo está uma noite de 1986 que não acabou: aquela em que a polícia reprimiu com violência um baile de black music na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, deixando uma porção de feridos. A frase que dá título ao filme saiu da boca de um policial naquela noite fatídica. Os brancos podiam ir embora, os pretos ficavam para apanhar.

Documento, espionagem, futurismo

Dois desses feridos que tiveram sua vida transtornada, ambos negros, conduzem a narrativa, vivendo mais ou menos seus próprios papéis: o DJ Marquim da Tropa, tornado paraplégico e preso a uma cadeira de rodas, e o artesão Chockito, que perdeu uma perna no incidente e que usa sucata para produzir próteses mecânicas para outros mutilados.

O filme se desenvolve então em vários planos simultâneos, acompanhando de modo minucioso o dia a dia dos protagonistas, recuperando em flashes o acontecimento traumático de trinta anos atrás e deixando entrever a articulação de uma ousada e descabelada ação política de subversão do status quo.

Sem deixar de lado o registro documental, somos introduzidos no terreno da ficção científica, da espionagem, da fantasia futurista. Entra em cena um terceiro personagem, Dimas Cravalanças (Dilmar Durães, também negro), que volta de um futuro distante para coletar provas das atrocidades do Estado brasileiro contra os excluídos.

País-gambiarra

Carlos Reichenbach costumava dizer – possivelmente ecoando Paulo Emilio Salles Gomes – que o melhor cinema brasileiro é aquele que faz de sua própria escassez de recursos elemento de invenção e criação. Branco sai, preto fica é a prova cabal dessa formulação. Nele, a pobreza tecnológica, mais do que um handicap a ser vencido, é uma necessidade de expressão. Cheias de fios soltos e remendadas com fita isolante, as engenhocas improvisadas pelos personagens para lançar bombas e viajar no tempo são não apenas um manifesto estético-político de afirmação do imaginário popular, como também, de certo modo, o retrato de um país provisório, feito nas coxas, o país-gambiarra chamado Brasil.

Assim, a nave na qual Cravalanças viaja no tempo não passa de um contêiner que sacoleja num terreno baldio. A própria Ceilândia, cenário e personagem do filme, traz desde a origem a marca desse crônico acochambramento. Seu nome vem da sigla CEI – Campanha de Erradicação de Invasões. É uma cidade artificial, criada para alojar famílias de operários que construíram Brasília e que, sem moradia, tinham ocupado áreas da capital. Ou seja: uma cidade fundada na exclusão. Em Brasília, como nas áreas nobres de todas as nossas metrópoles, inverte-se o título do filme: preto sai, branco fica.

O mérito maior de Adirley Queirós e sua equipe talvez tenha sido o de extrair de toda essa feiura, sujeira e infâmia uma esperança selvagem, um humor despudorado, uma beleza paradoxal.

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