Redação Pragmatismo
Racismo não 25/Mar/2014 às 10:34 COMENTÁRIOS
Racismo não

Grupo faz 'rolezão' contra o preconceito em shopping de luxo no Rio

Publicado em 25 Mar, 2014 às 10h34

Grupo organiza 'rolezão' contra a discriminação racial em shopping de luxo no Rio. Cerca de 100 pessoas, todas negras, se reuniram para assistir ao filme “12 Anos de Escravidão” e discutir o racismo velado que ainda existe no Brasil

“O bom é que aqui nós temos segurança privada, né? Pelo menos eu quero acreditar que é isso”. A frase, disparada em conjunto com um sorriso cúmplice, saiu da boca de Evandro Lima, de 38 anos, jornalista morador da Cidade de Deus. Ele foi uma das pessoas que participou, na noite de sexta-feira (21), do rolezão idealizado por Marcelo Ferreira da Silva, conhecido como Marcelo Dughettu, em um shopping de luxo do Rio de Janeiro. Os mais de 100 convidados, todos negros, foram ao local para assistir ao filme vencedor do Oscar “12 Anos de Escravidão” no Dia Internacional da Luta contra a Discriminação Racial. O resultado do encontro? Um já esperado desconforto silencioso.

A ideia de Marcelo – que é rapper, ativista (ou “artevista”, como ele brinca) e presidente do Instituto de Articulação Urbana, ligado ao gabinete do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes – surgiu há poucos dias e a mobilização foi rápida. O objetivo era promover o toque, a discussão, o incômodo, a inserção. “Juntar uma galera para invadir um shopping que é tradicionalmente elitista, onde a gente quando penetra é sempre a exceção, é uma coisa bacana. É uma experiência importante nessa mudança de consciência da nova geração. A molecada de 14, 15 anos precisa ter estímulos como esse. Eu tentei fazer disso uma atitude simples para mostrar que gestos individuais e com energia positiva podem reverberar mudanças muito grandes”, afirmou.

rolezão shopping rio de janeiro
Foto: Nina Ramos/iG Rio

“O filme, na verdade, foi só o motivo. Mais do que o filme, tem o lugar onde o filme está acontecendo. A gente tem uma diferença, por exemplo, das salas de cinema da zona sul para as das zonas norte e oeste, onde os filmes são dublados e não legendados. Quem disse que a galera de lá não fala inglês? Algo é incoerente. Você penetrar espaços sociais onde tradicionalmente você é minoria é um ativismo. Eu costumo dizer que é o ‘artevismo’. É usar a arte para alguma coisa que tem uma causa maior. É tirar um pouco o ego. O fato de eu ter acendido o fósforo não quer dizer que eu sou o cara da fogueira. A fogueira só aconteceu porque a galera caiu na pilha”, completou o carioca de 35 anos, nascido em Guadalupe.

Black power de respeito

Aos poucos, todos os convidados de Marcelo iam chegando. 20h50. “Bora pra sala, galera?”. Vamos lá. O grupo avança e a curiosidade aumenta. Uma vendedora para na porta da loja, saca o celular do bolso e chama a colega de trabalho para ver o “movimento”. Enquanto isso, a preocupação era comprar pipoca, refrigerante e sentar na cadeira sem perder o trailer. “Hoje as meninas de black (power) não vão ouvir reclamação”, brincou Marcelo. “Ih, já sai até com pipoca no cabelo, minha filha”, contou Fraulem Damasio, de 25 anos. A estilista Ligia Parreira, de 32 anos, continuou o papo cabelo: “Todo dia escuto alguma coisa. Que tenho rato no cabelo, que não penteio… Agora, no cinema, eu acho que tenho uma cara de barraqueira, então não senta mais ninguém atrás de mim”.

“Imagina… A maioria da população do Brasil é negra e pessoas ainda demonstram esse estranhamento. Parece que a maioria do Brasil está escondida. Esse tipo de ação é importante para ocupar espaço. Esse espaço é nosso por direito, mas a gente acaba perdendo com medo do olhar torto, discriminado. As pessoas não estão acostumadas”, afirmou Ligia, que é moradora do Méier.

21h. O rolezão continua. Agora, todos se preparam para o choque do filme, dirigido Steve McQueen, que conta a história de Solomon Northup, um homem liberto que é sequestrado e vendido como escravo. Enquanto as luzes estão acesas, Marcelo traça um paralelo do encontro com os rolezinhos, o movimento de jovens que começou em São Paulo e tomou várias cidades do país no início desse ano.

“É bem isso. O rolé, na verdade, veio de um sentimento de inserção social, não de protesto. É porque o cara tem grana para comprar o tênis que está aqui, mas quando ele entra para comprar um tênis aqui ele é perseguido pelo segurança. Então, beleza. Se você me persegue com um, tenta me perseguir com 100 pessoas. Conviver com esse tipo de situação é o cotidiano das pessoas. A gente acabou de ter há um mês o ator que foi preso confundindo com um assaltante. A gente acabou de ver a mulher sendo arrastada por PMs. Não que isso tenha uma ligação, mas tudo acaba esbarrando em uma situação racial”, contou.

“Não é Hollywood, é vida real”

Impossível controlar a emoção e reações (das mais variadas) durante o filme. Quando chegou ao fim, amigos se abraçaram, alguns choraram juntos, e o assunto rendeu do lado de fora da sala do cinema. Juliana Luna, de 27 anos, definiu com precisão seu sentimento. As chibatadas distribuídas aos montes no longa continuam por aí – apenas sem a reação física. “Cada olhar com preconceito, cada comentário sobre meu cabelo, cada pergunta ‘por que está aqui’, cada coisa deste tipo dói tanto quanto uma chibatada. Por isso fiquei tão tocada com o filme”, disse, ainda secando as lágrimas.

O designer João Batista, de 23 anos, também se deixou levar pela história. “Não é Hollywood, sabe? É vida real. O diretor soube transmitir bem tudo que o que as pessoas passaram naquela época. Ele não deixou o negro como coitado, e sim como ser humano. Se a gente reclama de como é hoje, imagina antigamente…”, falou. “Não é uma coisa que pode falar que ficou no passado. Por mais que seja vida real, é uma coisa que serve de motivação para enfrentar o dia a dia. Se hoje estamos nessa condição, é porque alguém lutou por isso”, pontuou o jovem.

Marcelo entrou na discussão: “Existe no subconsciente a premissa de que negro tem um tratamento diferente. A gente não pode negar isso, a gente está em uma cidade que é assim. Acho que o grande erro é a gente ficar dizendo que aqui é uma democracia racial. Se eu vou chegar para estacionar meu carro em um serviço de valet da zona sul, o cara vai me falar o preço. Ué, se eu estou estacionando meu carro no valet é porque eu posso pagar. Ele não precisa me falar o preço”.

“O balanço que tiro disso tudo é que é possível. Se você tem uma ideia, uma iniciativa, um pensamento, você pode transformar isso em ação desde que você acredite, que aquilo seja genuíno. Nesse momento em que o país e o mundo estão tão complexos, é preciso que tudo contribua para uma mudança e que influencie as pessoas de uma maneira positiva. Eu acho que nessa geração em que a internet e todos os meios de comunicação podem se tornar invasivos demais para as pessoas, a gente pode sair do clique e ir para o toque. Às vezes, você cria uma audiência na rede que não se transforma em ação real. A gente acaba ficando naquele ambiente superficial quando o que você vai enfrentar no dia a dia não é a rede. É a rua, o constrangimento, as coisas positivas, as coisas negativas. É aproveitar a rede para disseminar a experiência que a gente tem no mundo real”, finalizou Marcelo.

Nina Ramos, IG | Rio de Janeiro

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