Redação Pragmatismo
Truculência PM SP 25/Jun/2013 às 01:36 COMENTÁRIOS
Truculência PM SP

Um debate necessário: o papel da polícia na democracia

Publicado em 25 Jun, 2013 às 01h36

É chegada a hora de discutir o papel da Polícia Militar na democracia

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Qual é o papel da polícia militar na democracia? (Foto: AP)

Marcio Sotelo e Patrick Mariano, Viomundo

Outubro de 1992, cidade de São Paulo [1]

“Houve, sim, uma negociação, que não teve muito sucesso. A tropa de choque invadiu e começou então esse episódio e o massacre. Eu me encontrava no quinto andar e me lembrei de uma carta que uma senhora tinha me trazido com o Salmo 91. Entrei na minha cela, na 504E e naquele momento já tinham diversas pessoas ajoelhadas, clamando por seu Deus”, descreveu.

Logo depois, contou que um policial entrou na cela e pediu para que todos tirassem a roupa e saíssem nus, para fora.

“Descemos até o primeiro andar e todos tinham ficado sentados ao chão, com a cabeça entre as pernas, cobrindo a cabeça com os braços, e ali, por volta de umas 3 horas [da manhã], os policiais mandaram que os detentos retornassem para suas celas”.

Quando ele se dirigia para a cela, um policial o chamou com um toque no ombro. “Quando me virei e achei que ia tirar a minha vida, ele me pediu para ajudar a carregar alguns cadáveres. Eu ajudei a carregar, aproximadamente, 35 [corpos]”.

Abril de 1996, rodovia estadual, município de Eldorado dos Carajás/PA [2]:

“A polícia começou a se preparar, como se fosse para um combate. Corriam com as armas, mostravam, apontavam se ajoelhavam e nós olhando. Fechamos todas as portas e ficamos olhando pelas brechas” (Miguel Pontes, 42 anos, tiro na perna)

“De acordo com eles mesmos era dar tiro em vivo ou morto. Quando ‘se’ demos conta, era bala pra cima de bala e nego caindo morto” (Meirton Germiniano, 29 anos, tiros na perna)

São Paulo, junho de 2013 [3]:

Uma viatura parou diante de nós. Policiais apontaram a arma e ordenaram: “corram que vamos atirar”. Corremos e eles cumpriram a promessa. Atingiram uma amiga. Nos desesperamos. As ruas estavam desertas, não havia onde entrar. Estávamos sozinhos. Humilhados e indignados pela arbitrariedade, pela violência, pela covardia, gritamos por socorro.

O primeiro fato resultou em 111 mortes de civis por agentes do estado. O segundo, em 19 e, o terceiro, em muitos feridos. O que eles têm em comum, numa primeira e superficial análise? A violência policial. Qual a informação latente que quase nos escapa: a decisão política que determina a ação repressiva.

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Nos três lamentáveis episódios existiu um comando deliberado da autoridade política máxima do Estado para que a PM agisse com rigor e força.

As polícias militares estaduais são treinadas, desde sempre, sob a lógica do inimigo interno. Essa ideologia, todos sabem, se moldou e se fortaleceu na ditadura militar com a cartilha da segurança nacional e da manutenção da ordem pública.

Ou seja, partindo da premissa que a sociedade vive em eterna e plena harmonia, todas as ocorrências que causem ruptura a essa lógica, devem ser extirpadas do meio social. Assim, em um país desigual e injusto como nosso a regra é a canção de Gil: “não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido”.

Mesmo após a Constituição da República de 1988, esse pensamento, infelizmente, ainda constitui a base de estudos das escolas de formação das polícias e das forças armadas, estando presente em diversas leis e atos internos das corporações.

Não se fez uma releitura democrática dessa base ideológica. Daí que cada Polícia Militar se constitui como força política poderosíssima nas mãos dos Governadores, que as usam ao seu bel prazer.

A ordem para a ação policial nesses três casos partiu de um Palácio. Mas, outro componente deve ser descoberto para revelarmos as nódoas desses fatos: a decisão política contou com o apoio da grande mídia. A mesma mídia que cria heróis como o Capitão Nascimento e lota as salas de cinema fazendo apologia da tortura.

Prova disto é o editorial da Folha de São Paulo clamando por ação enérgica da PM contra os estudantes. O clamor do jornal resultou na batalha trágica da Consolação. A ideologia da repressão às manifestações não foi superada pelos novos ares do regime democrático e ainda compõe o pensamento não só das forças policiais, como também, da “elite pensante” brasileira que comanda as redações dos grandes veículos de comunicação de massa.

Para entender o pensamento com que são formados nossos policiais, basta uma rápida passada de olhos no youtube. Escolhemos um vídeo [4] que demonstra um pouco desse pensamento ao enaltecer a ação da Cavalaria da PMDF contra trabalhadores rurais sem terra, em frente ao Congresso Nacional.

É preciso, portanto, (re) discutir o papel da polícia na Democracia e sua formação para se evitar que fatos como esses se repitam. Não se desconsidera que grande parte desses policiais não gostaria de reprimir manifestantes, ganham pouco e são desvalorizados pelo Poder Público, sendo compelidos, quer pela formação, quer pelas desastrosas decisões políticas que os orientam, a agirem dessa forma.

Ao final, quem deu a ordem nunca é punido. No recente julgamento pelo massacre dos 111 do Carandiru, no banco dos réus estavam 26 policiais militares, dos quais 23 foram condenados. Nítido neste caso que decisões políticas (decorrentes da própria estrutura do Estado brasileiro) ignoraram a distinção – inafastável no Direito Penal Internacional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos e evidentemente possível em nosso ordenamento – entre mandantes ou responsáveis políticos e perpetradores. Um mandato, um gabinete oficial e um telefone significou muitas vezes neste país licença para matar.

Refletir sobre essas questões é tarefa imperiosa de todos que buscam a efetivação de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. Exigir dos governos – estadual e federal – que pautem essa questão e que abram o diálogo com os movimentos sociais é o primeiro e necessário passo. Existem exemplos país afora, como a experiência da Policia Militar do Estado de Sergipe na negociação de ordens de reintegração de posse, que devem ser estudados e seguidos. [5]

Enquanto se louvar o Capitão Nascimento em milhares de salas de cinema e enquanto não se debater essa questão, fatos como esse se repetirão Brasil afora.

O regime democrático, ainda mais em um país injusto socialmente como o nosso, não só deve conviver bem com o conflito, como necessita dele para avançar ainda mais em sua consolidação. A lógica da militarização da polícia obedecia à doutrina da segurança nacional, que tinha raízes na ideia de que os inimigos seriam “internos”. A questão, portanto, é: ainda hoje, trata-se ainda conflitos sociais como se os seus protagonistas fossem inimigos do Estado ou como cidadãos que tem o direito elementar de reivindicar, inclusive, ou principalmente, nas ruas?

Sufocar, através da repressão, os gritos da sociedade por transformação é prática de regimes autoritários, de amarga lembrança de todos nós.

O momento de pautar essa questão é agora. Assim, será possível completar a canção de Gilberto Gil, citada há pouco, para que se possa continuar a (e nos) transformar “as velhas formas do viver”.

Marcio Sotelo Felippe é jurista e ex-Procurador Geral do Estado de São Paulo. Patrick Mariano Gomes é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.

[1] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-10-01/sou-um-sobrevivente-do-carandiru-relata-ex-detento.html

[2] http://www.radioagencianp.com.br/node/1101

[3] http://blogdeumsem-mdia.blogspot.com.br/2013/06/movimento-passe-livre-relato-coletivo.html

[4] http://www.youtube.com/watch?v=c0qd5rKxyf8

[5] http://www.youtube.com/watch?v=GDh0a7LBBpY

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