Categories: Ditadura Militar

Hebe Camargo e Eric Hobsbawn: o que há de comum entre as duas personalidades?

Share

Hebe Camargo e Eric Hobsbawm: podemos elogiá-los à vontade?

Haroldo Sereza, revista Samuel

Veja que coincidência: quase um dia depois do outro, morrem Hebe e Hobsbawm. O que há de comum entre eles?

O historiador Eric Hobsbawm. Foto: divulgação

Obviamente, nada. A não ser o fato de que ambos eram humanos.

No conto “O empréstimo”, Machado de Assis brinca que “há em todas as coisas um sentido filosófico” e narra o encontro entre Custódio e o tabelião Vaz Nunes.

Vaz Nunes é apresentado como um homem generoso, e Custódio, como um aspirante desastrado a burguês, de pouco faro para negócios e menos amigo ainda do trabalho. Custódio, querendo investir numa fábrica de agulhas, vai pedir dinheiro a Vaz Nunes, que se prontifica a ajudá-lo, lamentando apenas não ter os cinco contos de réis que o outro pede.

Custódio, no entanto, acaba aceitando a ajuda de Vaz Nunes, ainda que num patamar inferior. Vaz Nunes segue, então, dizendo não ter quase nada à disposição (apesar do seu sucesso como tabelião). Custódio vai baixando a demanda, até que o Vaz Nunes lhe dá cinco mil-réis, um milésimo do que pedira o outro. “Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo.”

Leia também

A simpatia de Vaz Nunes era apenas um modo de lidar com as oportunidades de negócios. Não há, de fato, um elogio ao tabelião no conto, mas a apresentação de uma sofisticada forma de negar sem negar, de dar para receber, de manter a cordialidade sem que Custódio lhe custe, de fato, qualquer tostão. E, se o gasto é inevitável, ele é um milionésimo do pretendido pelo interlocutor, ou seja, quase nada, o suficiente para um jantar barato: ou seja, a afeição é garantida ao preço de uma refeição.

Escrevi no Facebook dois posts hoje: um sobre Hebe Camargo e outro sobre Hobsbawm. No de Hebe, escrevi que “Hebe era uma chata, conservadora, que negociava suas opiniões. Completei que a perda dela era irrelevante”. Claro que peguei pesado: a morte de Hebe não é “irrelevante”, mas talvez devesse ser irrelevante. Ela foi uma figura criativa televisão brasileira, no pior aspecto possível: construiu uma comunicação social que legitima o poder violento, opressor e, ao mesmo tempo, simpático. Por muito tempo foi a fiadora feminina na televisão do regime militar.

Era, por outro lado, uma conselheira constante de outros apresentadores, transmitindo o seu legado e as relações de apadrinhamento num universo conservador. Sim, ela era admirada por algumas mulheres por ser “prafrentex”, digamos assim, mas a que preço? O do eletrodoméstico que estava ajudando a vender, tarefa pelo qual cobrava o suficiente para comprar todas as joias que adorava ostentar.

Hebe Camargo. Foto: divulgação

Por outro lado, sobre Hobsbawm, notei que “um monte de gente que nunca leu uma linha de Hobsbawm, que nem sabia que ele era de esquerda, que acha o marxismo ‘ultrapassado’ e inútil lamenta a morte do historiador” – ou seja, como se sua obra, como a Hebe Camargo, não existisse!

Machado escreve que Vaz Nunes está morto e que, portanto, “podemos elogiá-lo à vontade”. Na verdade, devíamos seguir o exemplo do que Machado faz (e que é o contrário do que o narrador diz estar fazendo): não deveríamos elogiar nenhum morto à vontade, como se as pessoas vivessem apenas para virar mito.

Os mortos estão aí para serem pensados.

PS – Não posso deixar de publicar, aqui, as duas melhores intervenções na discussão que provoquei.

Heitor Ferraz Mello, ex-editor da Samuel, escreveu sobre a morte de Hebe:

A comoção da morte da Hebe é uma comoção televisa, tão só. Alguns ficam tristes. Outros, nem ligam. Na minha vida inteira, nunca precisei ver a Hebe na tevê. Minha mãe foi a primeira mulher a usar minissaia no lugar onde morávamos, um bairro militar, e nunca viu nadica da Hebe. Foi professora em colégios pobres e violentos de periferia sem precisar ver a Hebe.

Lidou com garotos armados em sala de aula sempre precisar da dona Hebe e seu puxa-saquismo empedernido. Nos últimos anos, ou seja, desde a queda do regime militar, Hebe era uma figura patética, pois não conseguia mostrar nenhuma admiração pela redemocratização. A Hebe era a mulher-mercadoria necessária num momento de progressismo, de crescimento da indústria de eletrodomésticos e cosméticos, e da própria televisão, como entretenimento e veículo de dominação ideológica. Ela não levantou nenhuma bandeira de comportamento feminista, mas apenas as dos produtos que vendia no ar.

Para isso, tinha de adequar seu discurso ao produto. Além disso, se não estou enganado, ela precisava humanizar os donos do poder, os milicos e governadores biônicos, mostrando-se afetuosa, ‘tadinho dele’, ‘que lindo’, ‘que fofura’ etc, falando docemente sobre sujeitos truculentos, que ela mesma admirava profundamente. Ou seja, ela também tinha de vender o poder durante a ditadura, ou apenas sustentá-lo com o discurso suave, da mãe compreensiva. Acho um horror esse culto à esta senhora que, ao lado de outras figuras tidas como reis e rainhas da comunicação, tipo Chacrinha, era o lado mais obscuro e conservador deste país. Triste país em que os reis da comunicação são essas figuras…

Na mesma semana em que a dona Hebe morreu, morreram o poeta Affonso Ávila, o romancista Autran Dourado, que viraram notinhas nos cadernos de Cultura do eixo Rio-São Paulo. (…) Quem tiver interesse em entender o fenômeno Hebe, pode ler ‘A noite da madrinha’, de Sérgio Miceli. Hebe morreu, mas já estava morta desde os anos 80, quando a ditadura acabou. Era apenas um arremedo de Hebe na televisão, sem seu produto principal para vender: a ideologia da farda.

E Lidiane Soares Rodrigues, sem querer, acabou me sugerindo o texto de Machado, ao escrever sobre os elogios vazios a Hobsbawm: Acho que ao lado da opção ‘curtir’ no Facebook poderia ter ‘lamentar’ – pois é isso que sinto toda vez que tentam pegar capital simbólico de empréstimo, como é o caso.