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Slavoj Zizek: “A ideia do inferno na Terra é o tipo americano de festa”

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"Sou um pessimista no sentido de que estamos nos aproximando de tempos perigosos. Mas sou um otimista exatamente pela mesma razão. O pessimismo significa que as coisas estão ficando bagunçadas. O otimismo significa que esta é precisamente a época em que a mudança é possível.", diz Zizek

O filósofo Slavoj Zizek. Imagem: Arquivo

Decca Aitkenhed, The Guardian

Slavoj Zizek não sabe o número do seu apartamento em Liubliana. “Não importa”, diz ele ao fotógrafo, que quer dar uma saída. “Volte pela porta principal, e então pense em termos de direita politicamente radical; você vira da esquerda para a direita, e aí, no final, outra vez à direita.” Mas qual é o número, caso ele se perca? “Acho que é 20”, sugere Zizek. “Mas sei lá. Vamos conferir.” Ele então sai pelo corredor, abre a sua porta e dá uma olhada.

Acenando para se despedir do fotógrafo, ele aponta à distância para o outro lado da capital eslovena. “Ali é um tipo de ‘establishment’ da contracultura –eles me odeiam, eu os odeio. É o tipo de esquerdista que eu odeio. Esquerdistas radicais cujos pais são todos muito ricos.” A maioria dos outros prédios, acrescenta ele, é de ministérios. “Odeio.”

Agora ele está de volta à sala de estar, uma faixa de espaço funcional clinicamente arrumada, carente de qualquer estética discernível, na qual as únicas concessões são um pôster do jogo de videogame “Call Of Duty: Black Ops” e uma imagem impressa de Joseph Stálin. Zizek despeja Coca Zero em copos plásticos do McDonald’s decorados com merchandising da Disney, mas quando abre um armário da cozinha vejo que está cheio de roupas.

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“Vivo como um maluco!”, exclama ele, que então me leva para dar uma volta pelo apartamento, para demonstrar por que os gabinetes da cozinha só contêm roupas. “Veja você, não há espaço em nenhum outro lugar!” E, de fato, todos os demais cômodos estão abarrotados, do chão ao teto, com DVDs e livros; volumes das suas próprias 75 obras, traduzidas em inúmeras línguas, preenchem um quarto inteiro.

Se você leu toda a obra de Zizek está melhor do que eu. Nascido em 1949, o filósofo e crítico cultural esloveno cresceu sob o governo de [Josip] Tito na ex-Iugoslávia, onde suspeitas de dissidência o relegaram à obscuridade acadêmica.

Ele atraiu a atenção ocidental em 1989, com seu primeiro livro escrito em inglês, “Eles Não Sabem o Que Fazem – O Sublime Objeto da Ideologia” [Jorge Zahar Editor, 1992, esgotado], uma releitura do grande herói de Zizek, Hegel, pela perspectiva de outro herói, o psicanalista Jacques Lacan. Desde então, houve títulos como “Vivendo no Fim dos Tempos” [Boitempo Editorial, 2012], junto com filmes –“O Guia Pervertido do Cinema”– e mais artigos do que eu consigo contar.

Pelos padrões da teoria cultural, Zizek se localiza na ponta mais acessível do espectro –mas, para que você tenha uma ideia de onde isso ainda o deixa, eis uma passagem típica de um livro chamado “Zizek: A Guide for the Perplexed” [Zizek: um guia para os perplexos], destinado a torná-lo mais compreensível: “Zizek encontra o lugar para Lacan em Hegel ao ver o Real como o correlato da autodivisão e da autoduplicação dentro dos fenômenos”.

Sob risco de magoar os fanáticos seguidores de Zizek pelo mundo, eu diria que grande parte da sua obra é impenetrável. Mas ele escreve com uma ambição estimulante, e sua tese central oferece uma perspectiva que até mesmo seus críticos teriam de admitir que é instigante. Em essência, ele argumenta que nada nunca é o que parece, e que a contradição está codificada em quase tudo. A maioria do que vemos como radical ou subversivo –ou mesmo simplesmente ético– na verdade não muda nada.

“Como quando você compra uma maçã orgânica, você faz isso por razões ideológicas, faz você se sentir bem: ‘Eu estou fazendo algo pela Mãe Terra’, e assim por diante. Mas em que sentido estamos engajados? É um falso engajamento. Paradoxalmente, fazemos essas coisas para evitar realmente fazer as coisas. Faz você se sentir bem. Você recicla, manda £ 5 [cerca de R$ 16] por mês para algum órfão da Somália, e cumpriu o seu dever.”

Mas é isso mesmo, fomos ludibriados a operar válvulas de segurança que permitem que o “status quo” sobreviva sem contestação? “Sim, exatamente.” A obsessão dos liberais ocidentais com a política de identidade apenas dispersa a luta de classes, e embora Zizek não defenda nenhuma versão do comunismo jamais vista em prática, ele continua sendo o que chama de “marxista complicado” com ideais revolucionários.

Para seus críticos, como disse um deles de forma memorável, ele é o Borat da filosofia, produzindo declarações cada vez mais ultrajantes, para provocar escândalo. “O problema com Hitler foi não ter sido violento o suficiente”, por exemplo, ou “Não sou humano. Eu sou um monstro”. Alguns o desprezam como um polemista tolo; outros o temem como um agitador em prol do totalitarismo neomarxista.

Mas desde a crise financeira ele foi elevado ao status de uma celebridade da recessão global, atraindo multidões de adoradores que o reverenciam como um gênio intelectual. Sua popularidade é exatamente o tipo de paradoxo que deleita Zizek, porque, se dependesse de si, ele diz que preferia não falar com ninguém.

INFERNO

Você não diria isso vendo o alvoroço energético de boas maneiras com o qual ele nos acolhe, mas ele é rápido em esclarecer que tanta atenção é apenas uma camuflagem para a misantropia.

“Para mim, a ideia de inferno é o tipo americano de festa. Ou, quando me pedem para dar uma palestra, e dizem algo como: ‘Após a palestra haverá uma pequena recepção’ –eu sei que isso é o inferno. Significa que todos os idiotas frustrados, que não são capazes de lhe fazer uma pergunta no final da palestra, chegam até você, e geralmente eles começam: ‘Professor Zizek, eu sei que o senhor deve estar cansado, mas…’. Bom, vá se foder! Se você sabe que eu estou cansado, por que está me perguntando? Estou realmente virando cada vez mais stalinista. Os liberais sempre dizem sobre os totalitários que eles gostam de humanidade, e tal, mas eles não têm empatia por pessoas concretas, não? Ok, isso se encaixa perfeitamente em mim. Humanidade? Sim, ok –algumas ótimas conversas, alguma grande arte. Pessoas concretas? Não, 99% são idiotas chatos.”

Acima de tudo, ele não suporta estudantes. “Com certeza. Fiquei chocado, por exemplo, uma vez que um estudante me abordou nos EUA, quando eu ainda estava dando uma aula –o que eu nunca mais vou fazer–, e ele me disse: ‘Sabe, professor, me interessou o que o senhor estava dizendo ontem, e eu pensei: não sei sobre o que deveria ser o meu trabalho. O senhor não poderia me oferecer mais alguns pensamentos, e aí talvez pinte alguma ideia?’. Vá se foder! Quem sou eu para fazer isso?”

Zizek precisou deixar a maioria dos seus cargos docentes na Europa e América, para se livrar desses alunos intoleráveis. “Eu odeio especialmente quando chegam para mim com problemas pessoais. Minha frase padrão é: ‘Olhe para mim, olhe para os meus tiques, não está vendo que eu sou louco? Como você pode sequer pensar em pedir para um maluco como eu para ajudar você com problemas pessoais, hein?’.”

Dá para ver o que ele quer dizer, porque Zizek ostenta uma imagem física bem impressionante –como um urso-cinzento, mexendo freneticamente na cara, fungando e gesticulando entre cada sílaba. “Mas isso não funciona! Ainda assim eles confiam em mim. E eu odeio isso porque –é isso que eu não gosto na sociedade americana– eu não gosto dessa abertura, como quando você conhece um sujeito e ele começa a lhe contar sobre a sua vida sexual. Odeio isso, odeio isso!”

Disso eu tenho que rir, porque Zizek toca no assunto da sua vida sexual momentos após nos conhecermos. Subindo o elevador, ele se põe a contar que uma ex-namorada costumava lhe pedir o que ele chamou de “estupro consensual”. Eu imaginava que ele iria querer discutir seu novo livro sobre Hegel, mas ele parece mesmo é interessado em falar sobre sexo.

“É, porque sou extremamente romântico aqui. Sabe qual é o meu medo? Essa etiqueta pós-moderna, permissiva e pragmática com relação ao sexo. É horrível. Falam que sexo é saudável; é bom para o coração, para a circulação sanguínea, relaxa. Chegam até a dizer como beijar também é bom, porque desenvolve os músculos aqui –isso é horrível, meu Deus!”

Ele fica horrorizado com as promessas das agências de namoro de “terceirizar” o risco do relacionamento. “Não é mais aquela paixão absoluta. Gosto dessa ideia do sexo como parte do amor, sabe: ‘Estou disposto a vender minha mãe para a escravidão só para trepar com você para sempre’. Há algo de legal, de transcendente a respeito disso. Eu continuo incuravelmente romântico.”

Fico pensando que eu deveria tentar intervir com uma pergunta, mas ele começa de novo: “Tenho limites estranhos. Sou muito –ok, outro detalhe, foda-se. Nunca consegui –mesmo se uma mulher quisesse– fazer sexo anual.” Sexo anual? “Ah, sexo anal. Sabe por que não? Porque eu não conseguia me convencer de que ela realmente gosta. Eu sempre tinha essa suspeita: e se ela só fingir, para se tornar mais atraente para mim? A mesma coisa com a felação; nunca fui capaz de concluí-la na boca da mulher, porque, de novo, minha ideia é: esse não é exatamente o fluido mais saboroso. E se ela estiver só fingindo?”.

Ele pode contar nos dedos das mãos as mulheres com quem dormiu, porque acha a coisa toda muito enervante. “Não consigo ter ficadas de uma noite. Invejo gente que consegue; seria maravilhoso. Estou legal, vamos lá, bang-bang –sim! Mas, para mim, é algo tão ridiculamente íntimo –tipo, meu Deus, é horrível ficar nu na frente de outra pessoa, sabe? Se o outro for maldoso com um comentário –‘Ha ha ha, sua barriga’, ou qualquer coisa– tudo pode se arruinar, sabe?”

Além disso, ele não consegue se relacionar com ninguém se não acreditar que pode ficar junto da pessoa para sempre. “Todos os meus relacionamentos –por isso eles são muito poucos– foram condenados a partir da perspectiva da eternidade. O que eu quero dizer com esse termo desajeitado é que talvez eles durem.”

Mas Zizek já se divorciou três vezes. Como ele lidou com isso? “Ah, agora eu vou lhe dizer. Você conhece o jovem Marx –não idealizo Marx, ele era um cara ruim, pessoalmente–, mas ele tem uma lógica maravilhosa. Ele diz: ‘Você não simplesmente dissolve um casamento; divórcio significa que você estabelece retroativamente que o amor não era o amor verdadeiro’. Quando o amor acaba, você estabelece retroativamente que nem era amor verdadeiro.”

Foi isso que ele fez? “Sim! Eu apago totalmente. Não acredito só que não estou mais apaixonado. Acredito que nunca estive.”

OSTENTAÇÃO BREGA

Como que para ilustrar isso, ele olha para o relógio; seu filho de 12 anos, que mora perto, vai chegar em breve. Como isto vai funcionar quando ele estiver aqui? Não se preocupe, diz Zizek, ele vai se atrasar –por conta da demora da mãe dele: “A vaca que diz ter sido minha esposa”. Mas eles não foram casados? “Infelizmente, sim.”

Zizek tem dois filhos –o outro já passou dos 30–, mas nunca quis ser pai. “Vou lhe contar a fórmula pela qual amo meus dois filhos. Esse é o meu lado liberal, compassivo. Eu não resisto a ele, quando vejo alguém machucado, vulnerável e assim por diante. Então, precisamente quando o filho não foi totalmente desejado, isso me fez querer amá-lo ainda mais.”

A esta altura já vejo que não vamos chegar nem perto do novo livro de Zizek sobre Hegel, “Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism” [“Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético”]. Em vez disso, ele me conta sobre as férias que tira com seu filho caçula. Na última, foram para o hotel Burj al Arab, um grotesco templo à ostentação brega em Dubai.

“Por que não? Por que não? Eu gosto de fazer maluquices. Mas fiz o meu dever marxista. Fiquei amigo do taxista paquistanês que mostrou a realidade para mim e o meu filho. Toda a estrutura de como os trabalhadores de lá vivem foi explicada, como ela era controlada. Meu filho ficou horrorizado.”

Neste verão, eles embarcam rumo a Cingapura, para uma ilha artificial com piscinas construídas no topo de arranha-céus de 50 andares. “Então podemos nadar lá e olhar para a cidade lá embaixo: ‘Ha ha ha, vão se foder’. É isso que eu gosto de fazer –coisas totalmente loucas.”

Não era tão divertido quando seu filho era mais novo. “Mas agora temos um certo ritmo estabelecido. Dormimos até umas 13h, aí vamos tomar café da manhã e daí vamos para a cidade –nada de cultura, só consumismo ou alguma coisa estúpida assim–, depois voltamos para jantar, aí vamos a um cinema, jogamos jogos até as três da manhã.”

Eu me pergunto o que todos os fervorosos jovens seguidores de Zizek vão fazer com isto, e temo que fiquem de mal comigo por eu não obter nada mais sério dele. Mas, para Zizek, Dubai nos conta tanto sobre o mundo quanto, digamos, um debate sobre o deficit. Quando chega seu filho, bem-educado e de jeito meigo, tento conduzir Zizek para a crise financeira, e para o papel que seus admiradores esperam que ele desempenhe na formulação de uma resposta radical.

“Eu sempre enfatizo: não esperem isso de mim. Não acho que a tarefa de um cara como eu seja propor soluções completas. Quando as pessoas me perguntam o que fazer com a economia, o que diabos eu sei? Acho que a tarefa de pessoas como eu não é fornecer respostas, mas fazer as perguntas certas.”

TEMPOS PERIGOSOS

Ele não é contra a democracia em si, mas acha que nossas instituições democráticas não são mais capazes de controlar o capitalismo global. “Reformas consensuais bacanas e graduais podem funcionar, possivelmente, em nível local.” Mas o localismo pertence à mesma categoria das maçãs orgânicas e a reciclagem. “É feito para você se sentir bem. Mas a grande questão hoje é como se organizar para agir globalmente, num imenso nível internacional, sem regredir a algum regime autoritário.”

Como isso vai acontecer? “Sou um pessimista no sentido de que estamos nos aproximando de tempos perigosos. Mas sou um otimista exatamente pela mesma razão. O pessimismo significa que as coisas estão ficando bagunçadas. O otimismo significa que esta é precisamente a época em que a mudança é possível.”

E quais são as chances de que as coisas não mudem? “Ah, se isso acontecer, aí estaremos lentamente nos aproximando de uma nova sociedade autoritária de apartheid. Não será –preciso salientar isso– o velho autoritarismo estúpido. Será uma nova forma, ainda consumista.” O mundo inteiro irá parecer Dubai? “Sim, e em Dubai, você sabe, o outro lado é literalmente escravo.”

Há algo de inexplicavelmente tocante com esse jeito bombástico e travesso de Zizek. Eu não esperava que ele fosse tão simpático, mas ele é realmente uma companhia boa e hilária. Eu esperava concluir que ele era um gênio ou um lunático –mas receio que vá embora sem saber ao certo.

Pergunto-lhe até que ponto ele recomendaria que o levemos a sério, e ele diz que prefere ser temido a ser visto como um palhaço. “A maioria das pessoas acha que estou fazendo piada, exagerando –mas não, não estou. Não é isso. Primeiro conto piadas, aí fico sério. Não, a arte é trazer a mensagem séria para o fórum das piadas.”

Há dois anos, ele arrancou os dentes da frente. “Meu filho sabe que eu tenho um bom amigo; nenhum de nós é gay, só bons amigos. Aí, quando ele me viu sem dentes, ele disse: ‘Eu sei por quê’. Meu filho! Ele tinha 10 anos! Você sabe o que ele me disse? Pense, associe, do jeito mais sacana.” Acho que posso supor. “Sim! Chupar! Ele disse que meu amigo se queixou de que meus dentes estavam atrapalhando.” Zizek ruge numa gargalhada, tomado por uma grande onda de orgulho paterno.

“E você sabe o que foi tragicômico? Depois que ele me disse isso, ele falou: ‘Pai, eu contei bem essa piada?’.”

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