Redação Pragmatismo
Educação 11/Nov/2010 às 02:12 COMENTÁRIOS
Educação

O ENEM não vale nada mas eu gosto de você

Publicado em 11 Nov, 2010 às 02h12

Lola Aronovich, em seu blog

Ontem no Twitter eu defendi o ministro da Educação, Fernando Haddad, e recebi a mensagem de um rapaz: “É, você diz isso, pois, não fez o Enem desse ano, e olha que eu fui bem, é uma vergonha ser estudante no Brasil”. Eu respondi que, de fato, não fiz o Enem, e não estava avaliando a performance de um ministro baseando-me num teste de dois dias, e sim numa gestão de cinco anos. Aí apareceu um outro garoto dizendo “Eu sei o que é uma escola pública e o que foi o Enem e posso dizer #foraHaddad e não tô nem aí pro partido dele”.

Bom, sinceramente, eu também não tô nem aí com o partido ou a cor ideológica do Haddad. Aliás, foi ontem que descobri que ele escreveu livros sobre socialismo (oh meu deus, McCarthismo nele!), então essa informação deve ser importante pra alguém. Nisso de educação eu tento ser o mais apartidária possível. Se a gestão do Paulo Renato (ministro entre 1995 e 2002) tivesse construído 14 novas universidades federais e 128 novos campi, aumentado o número de vagas de ingressos de 113 mil para 270 mil, reajustado o salário dos docentes e das bolsas de pesquisadores e alunos, contratado milhares de professores concursados, e não deixado uma conta de 2 bilhões de reais em dívidas pro novo governo pagar, eu juro que gostaria do homi, apesar d’ele ser tucano. Mas é que eu lembro quando entrei no mestrado da UFSC, no início de 2003, e recebi bolsa. O valor era idêntico àquele pago a minha mãe sete anos antes: R$ 724 (hoje está em R$ 1,200). É difícil convencer alguém que a educação no governo do PSDB foi um mar de rosas e hoje é um inferno. Até os alunos jovens vêem a diferença. Um mês atrás um aluno perguntou na sala, pra provar que a administração do Haddad é boa: “Vocês se lembram quando tivemos a última greve na UFC? Foi cinco anos atrás! Lembram como era antes? Tinha greve todo semestre!”. Outra aluna, em outra disciplina, contou que cursou cinco semestres seguidos sem ter um único professor efetivo, apenas substitutos. Aqui dá pra ter uma vaga ideia do que foi a incompetência tucana na educação. Hoje Paulo Renato é secretário da educação em SP, prega a cobrança de mensalidade em universidades públicas, e critica a “velha bandeira” dos professores de lutar por direitos iguais para todos. O quente mesmo é a meritocracia. Leia essa entrevista e me diga se realmente dá pra comparar Paulo Renato com Haddad.

Foi Paulo Renato, na sua então segunda gestão como ministro de FHC, que instituiu o Enem. A ideia era boa: fazer um teste nacional que, a exemplo do SAT americano, avaliasse todos os alunos em território nacional. Em 98, o Enem teve 157 mil inscritos. Este ano agora, teve 4,6 milhões. O exame cresceu trinta vezes. E, novidades pra você: o SAT (que em 2004 foi feito por 1,48 milhão de alunos americanos) também teve problemas quando foi implementado (mas é difícil comparar o SAT com o Enem. Afinal, o SAT é apenas um dos componentes que avalia se o aluno está ou não apto a ingressar numa universidade americanas. E todas as universidades são pagas. Até as públicas).

Hoje o Enem define 47 mil vagas em universidades públicas. 50 delas usam o exame como critério. Algumas, como a UFC, aderiram agora. Como as universidades têm autonomia, cada uma decidiu se queria aceitar o Enem ou não. Quando entrei na UFC, em março, ainda estávamos falando nisso, mas a decisão já tinha sido tomada. A USP e a Unicamp, no entanto, por motivos políticos (já que o governador de SP era o Serra), se aproveitou da confusão no ano passado para desqualificar o Enem. No ano passado houve um crime: funcionários da gráfica contratada (que pertence à Folha de SP) roubaram uma cópia do exame. O Estadão revelou a trama, felizmente antes do teste, e ele foi adiado. Ah sim, o Enem também serve para decidir quem entrará no ProUni (há 800 mil alunos beneficiados com bolsa) e quem conseguirá crédito educativo.

Este ano, no sábado, aconteceu um erro, novamente de gráfica (não a da Folha, uma outra, multinacional, que parece ser a maior do mundo): 21 mil cadernos (de um universo de 4,6 milhões) vieram errados. Isso representa 0,04% do total. Grande escândalo da humanidade! O MEC calcula que 2 mil alunos que foram prejudicados tenham que fazer uma nova prova (só a parte de sábado), e que isso não seria problema nenhum, já que no ano passado, devido às enchentes, algumas centenas de alunos (e presidiários) fizeram o exame após a aplicação nacional. Mas a Justiça decidiu que apenas alguns alunos fazerem nova prova fere a isonomia, já que os favoreceria, e anulou todo o Enem deste ano. O MEC vai recorrer. Alega que, devido à Teoria de Resposta ao Item (TRI), sistema adotado por montes de testes internacionais, dá pra usar questões semelhantes, com o mesmo grau de dificuldade, para os 2 mil alunos prejudicados.

A mídia está fazendo um carnaval em torno disso, pra variar. Mas é bom pensar sempre: quem é contra o Enem? A quem interessa voltar ao velho vestibular? Hã? Hã? Logicamente, aos donos de cursinhos, que são também donos de escolas e universidades particulares, grandes anunciantes de jornais, e que fazem um lobby imenso para nunca perderem seus privilégios. Aliás, uma coisinha que nunca entendi: se as escolas particulares são tão boas, por que seus alunos têm que fazer um ano de cursinho após terminá-las para ingressar nas universidades públicas que, até pouco tempo, eram só pra eles?

Lembro sempre de um aluno meu de inglês que foi procurar uma escola particular de qualidade para a sua filhinha, em Joinville. E ele ficou chocado porque, numa das escolas com a melhor reputação, a diretora fez questão de lhe dizer que lá o aluno era preparado pro vestibular desde a primeira série do ensino fundamental. Ele achou ultrajante que a filha estudaria onze anos pra passar num teste de dois dias. É só isso que uma escola faz? Encher o aluno de conteúdo para que ele aprenda e competir e enfrente um exame? Que tal ensinar a pensar criticamente, a ser cidadão, a querer mudar seu mundo, a pensar coletivamente? Se tem algo que eu nunca compreendi foi essa defesa do vestibular. Como se vestibular fosse algo bom! Como se vestibular tornasse as nossas escolas melhores. Como se vestibular não fosse um sistema elitista de filtrar alunos (e eu me sinto bastante confortável pra dizer isso, já que passei em primeiro lugar no vestibular do meu curso quando decidi voltar à faculdade, em 98).

Aí foi uma surpresa pra mim chegar numa reunião do Projeto Casa (que faz parte do estágio probatório de três anos que todo professor recém-contratado de universidade pública deve fazer) e ver meus colegas (principalmente os professores da área de Exatas) condenarem a substituição do vestibular pelo Enem. Eles, que seguramente são contra o sistema de cotas, estavam preocupados com o nível do aluno que entraria nos cursos sem um teste tecnicista como o vestiba. Ah, a velha preocupação com o nível do aluno! Lembro de dois professores, ambos fantásticos, no meu mestrado na UFSC. Um vivia reclamando: dizia que o nível do aluno (ele estava falando da graduação em Letras – Inglês) era cada vez mais baixo, que no mestrado se ensinava o que era pra ser ensinado na graduação, que cada vez mais o aluno chegava despreparado etc etc (tenho certeza que todo mundo já ouviu antes esse discurso do “no meu tempo é que era bom”). Já o outro professor dizia o contrário: que ele sentia seus alunos cada vez mais pensantes e participativos, e que dez, quinze anos atrás, os alunos chegavam ao curso sem falar inglês, e hoje todos entram com um inglês ótimo, o que é importante, já que o curso é todo em inglês. Eram duas visões muito diferentes. Eu fiz estágio-docência lá e achei os alunos incríveis. Assim como acho hoje meus alunos na UFC. Óbvio que há exceções, mas em geral o nível é muito bom. Acontece que tenho colegas que, aliados à mentalidade do “no meu tempo que era bom”, ainda têm uma concepção de “o lugar que eu venho — o sul maravilha, incluindo SP — é que é bom”. E eles fazem questão de falar isso pros seus alunos nordestinos. É ridículo, francamente. Pô, no meu mestrado e doutorado na UFSC eu tive um montão de colegas nordestinos. Muitas vezes eram os melhores da turma.

But I digress e preciso correndo ir trabalhar. Só queria dizer que não tenho a menor nostalgia do vestibular. Que questões do vestibular também vinham com problemas e eram anuladas, e ninguém fazia uma tempestade em cima disso. Que, assim como existem tentativas de trapacear no Enem, sempre existiram tentativas de trapacear no vestibular (só que todo ano, devido à tecnologia, essas tentativas ficam mais sofisticadas).

Lógico que eu gostaria que o Enem tivesse 0% de erros, não 0,04%. Mas não sei até que ponto isso é possível. Acho absurdo que a justiça queira que 4,6 milhões de estudantes façam a prova de novo por causa de 21 mil cadernos. Mas o mais triste é ver uma horda que repete tudo sem pensar, sem analisar os interesses por trás, servindo de manada a uma elite que nunca teve vontade de democratizar o ensino. Sabe qual é o sonho da mídia, né? É que todos os 4,6 milhões de estudantes do último final de semana acreditem que o Enem é um exame falido, pintem os rostos e saiam às ruas para gritar “Fora Dilma!”. Assim essa mesma elite pode trazer de volta um ministro da Educação confiável como Paulo Renato.

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