Redação Pragmatismo
Direitos Humanos 10/Mar/2017 às 09:54 COMENTÁRIOS
Direitos Humanos

Brincando de guerra

Publicado em 10 Mar, 2017 às 09h54

Nascidas em meio à ocupação americana no Iraque, as crianças que vivem em Mossul agora assistem à batalha sangrenta contra o Estado Islâmico. Nas brincadeiras de guerra, se fantasiam de soldados enquanto esperam seu destino: matar ou morrer

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(Foto: Yan Boechat/Agência Pública)

Yan Boechat, Agência Pública

Ainda faz frio nas primeiras horas de uma manhã ensolarada de fevereiro quando um grupo de meninos entre 6 e 13 anos corre entre as ruínas do que um dia foi um bairro de Mossul, no norte do Iraque.

Eles se escondem por trás de torres de energia destruídas, pulam para dentro dos buracos abertos pelos ataques aéreos e, volta e meia, disparam com suas armas imaginárias. São rifles AK-47, dizem eles, os mesmos usados pelos militantes do Estado Islâmico que dominaram a segunda maior cidade do Iraque por quase dois anos e meio. O armamento pesado é feito com cabos de vassoura, restos de caixotes para o transporte de frutas ou qualquer pedaço de madeira que lembre vagamente uma arma. Um deles chegou a criar um sistema de disparo com um elástico. Sua munição são as cápsulas de balas deflagradas que cobrem as ruas de Mossul.

Até agora matamos apenas uns 22”, conta Ali Hawl, de 10 anos, cabo de vassoura cortado em punho, e um olhar sério de soldado. “Mas ontem foi melhor, matamos mais de 50, foi uma grande batalha.” Seu irmão, Ahmed, um ano mais velho, concorda. “Eles tentaram fugir, estavam com medo de nós, mas não deixamos nenhum escapar, pegamos todos os ‘daesh’”, diz, referindo-se aos soldados do EI com o acrônimo árabe de cunho depreciativo para Estado Islâmico.
Acompanhados de um irmão de 8 anos e mais dois amigos, os garotos passam o dia a caçar os militantes do Estado Islâmico que habitam suas fantasias.

Os mais difíceis de matar são os guerrilheiros estrangeiros, principalmente os russos, esses são muito bons lutadores, não fogem e temos tido trabalho com eles”, conta Mohamed Suri, um menino de 12 anos que carrega seu pedaço de madeira como se fosse um bem treinado soldado, com o dedo indicador apontado para a frente, como fazem os combatentes profissionais para não acionar o gatilho por acidente.

Os cinco são moradores de um dos bairros periféricos da parte leste de Mossul que assistiu às primeiras e mais sangrentas batalhas entre as Forças Especiais Iraquianas e os militantes do EI pela retomada da capital econômica e política do Califado Islâmico. Foram semanas de combates intensos. Apenas nesta região da cidade, os extremistas atacaram o exército com mais de 300 carros-bomba, muitos deles dirigidos por meninos com idade semelhante à de Mohamed e seus amigos.

Walis Hawl, o irmão menor de Ali e Ahmed, ainda guarda vivas as lembranças daqueles dias. “Eu ficava debaixo da cama ou com minha mãe. Era muito barulho e eu achava que íamos todos morrer”, conta ele, com sua arma tão pequena quanto seu tamanho. Ao final da batalha, as ruas da vizinhança estavam cobertas de corpos, que acabaram servindo como diversão. “Jogávamos pedras neles, e batemos com um pedaço de pau nas suas cabeças, acabamos com eles. Só não mexemos naqueles que os cachorros estavam comendo”, diz, rindo, Ali, pouco antes de sair com sua equipe para uma nova caçada naquela manhã do início de fevereiro.

A paz é exceção

Apesar de brutal, o cotidiano dos cinco amigos do bairro de Al Samah é a regra em Mossul. Desde a chegada do Estado Islâmico à cidade, em junho de 2014, as crianças têm sido vítimas frequentes tanto dos extremistas como, agora, da guerra contra eles. Uma estimativa do Unicef, a agência das Nações Unidas para a defesa das crianças, estima que quase 50% dos moradores de Mossul são menores, com idade variando entre 0 e 12 anos.
Trata-se de uma geração que nasceu e viveu em meio à guerra que consome o Iraque há quase 15 anos. Para essas crianças, momentos de relativa paz são a exceção, não a regra. “É uma situação complexa em que as crianças já estavam vulneráveis e agora continuam ainda mais”, diz Sharon Behn Nogueira, a coordenadora do Unicef no Iraque. Só entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano, a agência contabilizou mais de 100 mil crianças que saíram da cidade em busca de refúgio, muitas delas sem os pais.

É o caso de Abdulah, de 12 anos. Seu pai foi morto pelo Estado Islâmico, diz ele, por ter sido pego vendendo cigarros em Mossul, um crime grave para os extremistas, que proíbem quase tudo que não existia nos tempos em que Maomé vivia, no século 7. Sua mãe, viúva, acabou casando-se com um militante de alta patente do EI e, com o avanço das tropas iraquianas na cidade, fugiu para a Síria com o marido. “Ele não quis me levar, disse que seria muito trabalho fazer a viagem com uma criança”, conta ele, resignado. Sua sorte foi ter sido acolhido pela mãe de dois de seus amigos de rua que, com ele, mendigavam em Mossul. “Eles são meus irmãos agora, somos uma família.” Os quatro vivem em uma barraca no campo de refugiados de Hasan Shan, a 40 quilômetros de Mossul. A mãe dos amigos, e agora sua mãe, também é viúva e os três passam parte do dia a pedir cigarros aos estrangeiros que visitam o campo. “É para minha mãe, ela está na barraca”, diz Abdulah.

Ele, como a maioria das crianças que vivem em Mossul, quer ser soldado. Assim que tiver idade, conta, vai se alistar no exército. Seu objetivo, como quase de todos os garotos, é lutar contra os militantes do Estado Islâmico. “Quero matar todos eles com uma arma de verdade”, diz Abdulah. No campo de Hasan Shan, no entanto, nem ele nem os milhares de meninos de sua idade podem fantasiar batalhas imaginárias para descarregar a raiva e a frustração dos dias de terror: é proibida qualquer brincadeira que tenha ligação com a guerra.

Armas de brinquedo, mesmo pedaços de madeira que possam fazer lembrar vagamente um rifle, são proibidas. “Nem com o dedo podemos fingir que temos um revólver, eles nos batem”, diz Said Hussein, o “irmão” mais novo de Abdulah. “Precisamos tirar da cabeça desses meninos a ideia de que lutar e matar é bom”, conta um dos guardas do campo, com um rifle AK-47 pendurado no ombro, responsável por disciplinar os meninos e suas brincadeiras.

Não será uma tarefa fácil. Nos dois anos e meio em que o Estado Islâmico esteve controlando Mossul e região, as cerca de 1,5 milhão de crianças que viviam sob o seu domínio deixaram de ir para escolas regulares. Todo tipo de educação tradicional foi suspensa e apenas os meninos tinham o direito de frequentar as madrassas islâmicas. Lá, a maior parte do tempo era dedicada a estudar o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e, em alguns casos, técnicas de combate.

As crianças chegam aqui com assuntos militares na cabeça, não conseguem usar exemplos simples, como frutas ou objetos, para ilustrar suas operações matemáticas mais básicas”, diz Mustapha Akim, coordenador de uma escola instalada no campo de refugidos de Khazer, onde vivem mais de 140 mil pessoas hoje, metade delas crianças. “Os meninos em geral fazem contas com balas de rifles e suas representações emocionais quase sempre estão ligadas a situações violentas, como decapitações ou assassinatos. É uma situação extremamente complexa”, conta ele. Os serviços de atendimento psicológico nos campos é carente, ocorre apenas uma vez por semana, e a demanda é imensamente maior que a oferta. “Só os casos mais extremados são atendidos. Os traumas cotidianos, esses eles terão que lidar sozinhos”, diz Akim, resignado.

Pesadelo e morte

Moamim Namim tem apenas 10 anos e é perseguido constantemente por um pesadelo aterrador. Volta e meia ele sonha que está pegando uma bala às escondidas em uma pequena loja de doces e é descoberto com ela já na boca. Alguém o surpreende e o leva para a praça em frente a sua casa. Ela está cheia de gente, seus pais estão entre os espectadores. Então um homem de barba longa, negra, o agarra e coloca sua mão sobre um tronco de árvore cortado. Com um golpe certeiro de machado, arranca sua mão direita.

Algumas vezes, o sonho muda.

Em vez da mão, sua cabeça é cortada. “Sempre acordo, é muito ruim. O pior é quando cortam minha mão”, diz ele, sentado ao lado de galões de combustível que ajuda a vender com seu pai, exatamente em frente à praça de seus pesadelos. Não é preciso muito tempo de conversa para entender por que Moamim tem pesadelos terríveis tão frequentes.

A praça de seus sonhos e de seu cotidiano era um tradicional ponto de execuções do Estado Islâmico em Mossul até essa parte da cidade ter sido retomada pelo exército iraquiano. Moamim, assim como muitas das crianças da região, era incentivado a assistir às execuções. “Era bem ali”, diz ele apontando para o largo agora semidestruído pela batalha que expulsou dali os militantes do EI há poucos meses. “Às vezes eles usavam uma espada, às vezes uma faca e em alguns casos as pessoas jogavam pedras, mas isso era só para mulheres”, conta com naturalidade. Ele quer voltar a estudar. Mas, por enquanto, seu pai não quer deixá-lo retornar à escola. “Quando eles saíram daqui, eles avisaram que iriam colocar bombas em todas as escolas. Achamos melhor esperar. Ele já está há tanto tempo sem ir, não fará diferença esperar mais um pouco”, diz Ahmed Namim, enquanto pede ao filho que cobre a venda de dois litros de gasolina para um motorista estacionado nas proximidades da praça.

Para a maior parte dos mossulis, Moamim teve sorte ao longo dos últimos três anos. Não pereceu na mão do Estado Islâmico e não sofreu nenhum ferimento nos cinco meses de batalhas intensas que já dura a tentativa de recuperar a cidade dos extremistas. Não existem números exatos sobre o número de civis mortos em Mossul desde o início da ofensiva. O governo iraquiano não divulga nenhum número e a maior parte das agências internacionais diz não ter capacidade de fazer um monitoramento preciso. Apenas a organização não governamental Iraq Body Count se arrisca a fazer estimativas. De acordo com a ONG, entre outubro do ano passado, quando a ofensiva contra Mossul teve início, e fevereiro deste ano, mais de 7 mil civis foram assassinados em todo o Iraque, sendo mais de 70% das mortes ocorridas naquela cidade, onde atualmente se desenrola a maior campanha militar no Iraque desde a invasão americana em 2003.

Nos hospitais de campo que atendem soldados e civis vítimas das batalhas, o número de crianças feridas e mortas é impressionante. A reportagem da Pública acompanhou o cotidiano de alguns desses hospitais por vários dias entre novembro e fevereiro e testemunhou dezenas de vítimas infantis. “Esta é uma batalha diferente, com muitos civis, e as crianças são as mais frágeis”, diz o capitão das Forças Especiais Iraquianas Ahmed Ali, um dos médicos que atuam exclusivamente nesses centros de atendimento médico próximos das frentes de batalha.

Nos momentos mais intensos, o hospital de Mossul chega a receber até 200 vítimas civis apenas em um dia – quase metade crianças. Muitas delas chegam a esses centros dilaceradas pelos morteiros, granadas ou pelos estilhaços dos carros bomba. Ninguém sabe ao certo quantas morreram, mas não seria leviano afirmar que os corpos de crianças já se contam aos milhares nesta guerra.

Mais sangue infantil será derramado. Depois de conquistarem a parte leste de Mossul, agora as forças iraquianas estão invadindo o outro lado da cidade, cortada pelo rio Tigre. É uma área mais densamente povoada, com ruas estreitas e elevações de terreno que prometem tornar as lutas ainda mais sangrentas. Pela estimativa do Unicef, ao menos 350 mil crianças irão enfrentar esta que promete ser a fase mais brutal da retomada de Mossul, por viverem na parte afetada – no total, a cidade abriga mais de meio milhão de crianças.

A única certeza que há neste momento é que muitas delas não sobreviverão.

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