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Barbárie 06/Out/2016 às 10:44 COMENTÁRIOS
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O massacre do Carandiru, o judiciário paulista e o nazismo

Publicado em 06 Out, 2016 às 10h44
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Douglas Rodrigues Barros*, Pragmatismo Político

Não devia ser desconhecida a tese que demonstra que a circulação mercadológica produz uma aparência ilusória, mas necessária, que fundamenta o ornamento jurídico. O sujeito de direito é, então, complemento e substância dessa ilusão historicamente produzida.

A forma como parte do judiciário paulista se comporta ante os problemas jurídicos e sociais, porém, respalda-se em outra forma de entendimento sobre o sujeito de direito. Forma essa que muito tem em comum com a frieza e partidarização de suas análises no atual momento de crise.

A categoria sujeito de direito é fundante da própria estruturação do ordenamento jurídico, no sentido de que por ela é possível desvendar a raiz daquilo que estrutura o corpo social a partir de seu desdobramento histórico e econômico. Raras são as vezes, no entanto, em que a doutrina jurídica tradicional se debruça sobre essa categoria.

Hans Kelsen, talvez o jurista mais influente do século XX, em seu normativismo positivo toma a questão atribuindo a norma jurídica como algo anterior a própria subjetividade. Em outras palavras, é a norma jurídica que constitui as pessoas jurídicas significando, desse modo, que é a norma jurídica que estabelece a relação social normatizada.

Essa forma ilusória da teoria jurídica de Kelsen dialoga frontalmente com Kant e visa aplicar um cientificismo na teoria do direito que a possa dotar da mesma positividade que envolve (ou envolviam) as leis físicas e químicas. A sua Teoria Pura do Direito se debruça, assim, na tentativa de separar a norma jurídica, em sua indivisibilidade com o dever-ser e sanção coercitiva, do todo social.

Nesse sentido, a teoria de Kelsen faz um recorte da realidade social circunscrevendo um aspecto jurídico-formal que se separa das relações sociais. Podemos traduzir isso como a letra fria e morta da lei. A norma vem antes da própria relação social como se fosse algo natural.

Ora, a teoria de Kelsen nesse momento reflete com clareza a separação efetiva que existe na realidade social. Ela é ideológica, não, no simples sentido de que opera uma inversão da realidade de tipo; são as relações sociais que institui a norma jurídica. Não. Ela é ideológica no sentido de que a própria realidade social, que é cindida estruturalmente, fornece uma forma de sujeito que nada tem em comum com as pessoas e sim como uma forma de estrutura determinada por relações econômicas.

Aí está o fetichismo da teoria jurídica de Kelsen. O grande teórico pensa numa norma jurídica sem contradições no interior de uma realidade contraditória, cindida e desigual. O que se apreende na teoria de Kelsen, não é a realidade, mas a ilusão que estrutura essa realidade. Os juristas sabem como as coisas funcionam, como a lei nem sempre é legitima, mas a naturalizam para estabelecer a normatividade

Assim sendo, a teoria normativa de Kelsen está consciente que as normas jurídicas implicam nas crises e mazelas da realidade social, no entanto, nega esse fato para manter irretocável o núcleo que a Institui. Qual seja: a forma da mercadoria. A relação existente entre sujeito de direito e os indivíduos é a tentativa de naturalização de uma forma social historicamente especifica nascida na modernidade com o advento do capital.

A ilusão que constitui a nossa realidade se desenvolve a partir da sociabilidade mercadológica. Nesse sentido a categoria sujeito de direito é uma construção artificial, como dizia Pachukanis. A ilusão, portanto, está na forma de relação social determinada pela estrutura de mercado e não na consciência das pessoas.

A ilusão jurídica, da qual advoga Kelsen, é socialmente necessária porque promove o modo de funcionamento especifico de uma produção e reprodução social fundamentada na produção e circulação de mercadorias. Trata-se, pois, de uma ilusão constituinte da realidade social que visa fomentar e fundamentar as normas nas quais os indivíduos estarão subordinados e se relacionarão.

É trabalho da filosofia a impertinente questão: É possível que a norma jurídica fundamente a relação social normatizada? É possível fazer um recorte da realidade social circunscrevendo um aspecto jurídico-formal que se separa das relações sociais?

Como estas formas estão naturalizadas pela frieza da positividade da norma jurídica, escapa aos juristas o solo histórico de uma formação social específica que se baseia no direito e propriedade. Ao hipostasiar a norma, a doutrina da pessoa jurídica é colocada somente como uma etapa superior determinada pelo progresso natural da humanidade.

Se apaga, assim, a própria sociedade e a lógica da norma fica interna a si mesma sem nenhuma relação com o mundo dos homens. É uma má-infinitude em que as normas bastam-se a si mesmas, mas são incapazes de relacionar-se com o mundo concreto. O que vale é a análise lógica da interpretação fria da letra morta da lei.

O ordenamento jurídico aparece, assim, cindido do restante da vida social e, é por isso que essa separação deve aparecer de forma totalmente positiva e rigorosamente “cientifica”. Os indivíduos são reduzidos a uma abstração geral que responde a uma concreta forma de produção e reprodução da vida material.

Não é à toa que essa frieza pode ser expressa na negação, peremptória de um desembargador, ao massacre no Carandiru, uma vez que a interpretação da norma pode muito bem não contemplar o fato existente. Ou ainda, as categorias lógicas podem ser interpretadas de maneiras diversas.

Mas, se deve ainda fazer a seguinte questão: o que leva o judiciário a não ter provas e ter convicção e ao ter provas preferir a convicção? Segundo Ivan Sartori, não há provas suficientes que de fato houve massacre (!!!).

É preciso refletir que isso pode ser um sintoma grave de época: os polos contraditórios – capital/trabalho – em momentos de crise terminam por coincidir; o mercado toma cada vez mais para si as funções do Estado; os aparatos estatais, como Universidades e Hospitais, começam a funcionar como empresas lucrativas; a esfera pública se privatiza e a esfera privada se torna pública no conteúdo vulgar das redes sociais; toda reforma resulta numa contrarreforma que traz consigo formas de pensamento arcaico; a segregação racial se torna política oficial com a brutal violência policial e conteúdo que só se distingue do agir e pensar dos bandos de extrema-direita por pequenas diferenças.

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Esses são alguns dos fenômenos responsáveis pela desagregação social não apenas brasileira, mas no mundo como um todo. De certa forma, isso denota um total esgotamento e esgarçamento de uma época na qual a democracia era sinônimo de liberalismo econômico. Isso já aconteceu antes e resultou em tragédia na história da civilização ocidental, agora sua farsa se expressa nas palavras de um desembargador que nega a realidade dos fatos que massacraram 111 pretos.

Com a consciência de uma lei totalmente desligada da realidade social ele pode afirmar tranquilamente que o holocausto nazista não existiu, talvez, não faça isso porque se tratavam de brancos.

*Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutorando em Filosofia política e colaborou para Pragmatismo Político.

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