Redação Pragmatismo
Justiça 05/Set/2016 às 15:45 COMENTÁRIOS
Justiça

O mecanismo legal de arbitrariedades

Publicado em 05 Set, 2016 às 15h45
direito penal mecanismo legal arbitrariedades

Victor Silveira Garcia Ferreira*, Pragmatismo Político

No século XVIII, na Europa, duas matrizes ideológicas totalmente contrapostas eram identificadas. Sob o domínio da nobreza e do clero, se consolidava uma classe altamente revolucionária que, a princípio, se organizou intelectualmente para contestar as estruturas políticas vigentes à época. A insurgente burguesia mercantil estava completamente alheia às sustentações do Estado absolutista, o qual invocava sua legitimidade em argumentos divinos. Além do mais, a atuação burguesa era claramente delimitada pelos estamentos hegemônicos, sendo assim, o objetivo primordial da burocracia, consistente no acúmulo de capital, era debilitado em face da arbitrariedade do Monarca.

Tais fatores foram preponderantes para que dessem início a um movimento de contestação ao domínio do rei e sua soberania divina de poder. Surge, então, o Iluminismo, caracterizado por defender, dentre outras coisas, que a razão não estava no Estado, mas no indivíduo apto a reconhecer os verdadeiros direitos naturais, albergados na propriedade privada, na liberdade e na igualdade perante a lei.

O iluminismo foi o responsável por instituir a base teórica que desencadeou as revoluções burguesas, o marco político do Capitalismo. Tais revoluções foram assinaladas pela tomada do poder pela burguesia, que a partir de então, acabou eliminando sua própria filosofia crítica para postular em defesa do Estado, com o intento de dotá-lo de legitimidade. Nesse contexto, surge Hegel, em amparo da racionalidade do Estado -‘’O Estado é a razão’’-, com o argumento de que a razão individual havia sido transplantada para o Estado capitalista. Assim se estrutura a compreensão política e social contemporânea.

O capitalismo inaugurou uma forma política jamais vista em sociedades anteriores, denominada de ‘’Estado de Direito’’. Pela primeira vez na história, constrói-se um ente neutro, em tese, aos explorados e exploradores, no qual os detentores do poder econômico não necessariamente gozam do poder político, diferentemente dos modos pretéritos de produção, nos quais as relações de autoridade se manifestavam de forma direta. Teoricamente, a função do Estado contemporâneo é a garantia dos princípios iluministas por meio da legalidade (direitos subjetivos), protegendo, assim, os indivíduos das arbitrariedades.

Porém, o que se observa, é que a razão de ser do aparato superestrutural é a paliação dos antagonismos de classes que, com a sustentação econômica do Capitalismo, tendem a se incrementar. E a legalidade, como observa o professor Juarez Tavares, está sendo usada como ferramenta legitima de supressão da liberdade de alguns. Isso ocorre, pois, ainda que de modo oculto, a forma política é, em essência, a maneira legal pela qual a classe burguesa mantém seu domínio e, para isso, faz-se necessário o uso de um aparato apto a suspender conflitos, segregando os inimigos potenciais do modo de produção, os consumidores fracassados. Desta forma, a tendência é a rotulação das classes subalternas como criminosas, reforçando as desigualdades e ocultando a lógica do conflito de classes pela ótica do consenso social (objetivos latentes da norma penal).

Consoante aos ensinamentos do Professor Alysson Mascaro, depreende-se que o Estado nada mais é do que uma terceirização burguesa que, independentemente do administrador, estará em favor do capital. A forma política atual é responsável por estruturar as relações de reprodução do capital (forma-valor), portanto, ainda que uma classe trabalhadora assuma o poder do Estado, este será substancialmente capitalista, devido ao seu âmago. Ademais, com o poder hegemônico da mídia imperialista e, diante da necessidade de grandes investimentos de campanha, a propensão é que os representantes burgueses apropriem-se muito mais do Estado do que as outras classes, mesmo em plenas democracias. E o Direito, produto da manifestação do Estado soberano, é o aparato indispensável à reprodução do capitalismo, atuando de modo a assegurar os princípios basilares do sistema econômico, procedendo em favor do domínio dos detentores do capital. Logo, não é possível afirmar que existe consenso em torno de alguma norma. A lei penal é um mero ato político, e o seu infrator é tão somente um delinquente político. As classes mais baixas tendem a ser estigmatizadas, enquanto os burgueses não, ainda que pratiquem condutas extremamente imorais, afinal o controle sobre os meios de produção lhes confere o controle indireto (e as vezes direto) do Estado.

Sendo assim, por meio de definições gerais, o legislador ‘’protege’’ um determinado bem jurídico pela via penal, sem dados empíricos pertinentes, passando à concepção coletiva a imagem de zelador dos interesses comuns. E os juristas, formados à base do pensamento que remete o Estado à razão, propendem a reforçar a legalidade por meio de argumentos técnicos simbólicos, isto é, demonstrando a validade de uma incriminação como fruto de um poder racional que expressa uma utilidade coletiva. Atuam de modo semelhante ao clero na idade média, porém certificando a exclusão social e o poderio da minoria com fulcro na lei, e não em poderes divinos. Desta forma, a legalidade oculta a ilegitimidade de muitas normas sem real fundamento social manifesto.

A grande maioria dos delitos que se encontram- estrategicamente- tipificados no código penal possuem destinatários determinados. Tais condutas, ‘’ilícitas e antijurídicas’’, manifestam-se no plano fático como protestos à ordem social; figuram como a expressão de cidadãos atraídos pelos anseios de poder, que, por discernirem a lógica do conflito social, perderam a fé na ‘’vitória’’ econômica através dos meios legais. Outrossim, o rigor normativo em face das condutas atribuídas aos marginalizados é indubitável! Nosso código penal, por exemplo, prevê dois tipos de crimes patrimoniais bem semelhantes, mas de alocutários distintos: a sonegação de impostos e o furto. Em ambos, há a possibilidade de ressarcimento integral ao ofendido, mas aos furtadores é concedida, quando restituído o dano, apenas uma mitigação da pena, enquanto aos sonegadores que pagam o tributo, ocorre a extinção da punibilidade.

A pena, por sua vez, atua como um mecanismo de embargo a conflitos que jamais poderão ser resolvidos dentro da forma política e social vigente. Como ressalta o professor Tédney Moreira, o aparato punitivo do Estado é incumbido de postergar a resolução de conflitos irresolutos, contribuindo, assim, para a contenção de crises sistêmicas.

Porquanto, a seletividade do direito penal não se manifesta apenas no elenco de condutas criminalizadas, mas, também, na prática cotidiana repressiva. O mais intrigante é que as agências de rua se utilizam de membros integrantes das mesmas classes rotuladas para realizarem as funções ostensivas e preventivas. O grande mestre Zaffaroni denomina tal fenômeno como ‘’seleção policizante’’. Destarte, indiretamente, a legalidade molda o processo de autodestruição de classe, designando membros de classes subordinadas para um cargo desvalorizado, cuja função é representar os interesses preponderantes.

O trabalho das agências de rua se assenta na ideia de que um inimigo precisa ser eliminado para que a paz social se estabeleça. Porém, para efetivar tal propósito, é preciso partir-se de componentes de desvaloração dos potenciais autores de ilícitos penais, a partir de preconceitos extremamente conflitivos quanto aos próprios grupos sociais dos quais provieram. Logo, os frutos da seleção policizante acabam protagonizando a seleção criminalizante, isto é, abordando indivíduos que se enquadram nos figurinos estereotipados, os quais não necessitam realizar grande esforço para colocar-se em posição de risco de criminalização. Esta seleção, contudo, não se efetua mediante critérios policiais exclusivos, mas seu exercício é naturalmente condicionado pelo poder de outras agências de repercussão geral, como a comunicação social, que se ocupa de enraizar opressões históricas no inconsciente coletivo.

E a grande consequência da desigualdade prática do sistema penal é a insurgência dos oprimidos contra os fatores mais externos da luta de classes, quando, na realidade, o que se encontra por trás dos interesses das agências policiais são causas infraestruturais do modo de produção, dificilmente visíveis a olho nú. Como resultado, os grupos vulneráveis acabam revoltando-se mais com a polícia do que com a sua estigmatização estrutural frente a um sistema mascarado e hegemônico.

Os modos de controle social penal sempre foram condicionados à disponibilidade de mão de obra. No século XVI, diante do período de pleno emprego, as massas excedentes marginalizadas eram visualizadas, pela classe dominante, como perigosas à ordem social. Por isso, promoveu-se à época uma política criminal sanguinária, de aniquilação, intermediada por um ‘’Estado’’ de polícia pleno, com o escopo de exterminar os ‘’perigosos’’. No entanto, com o passar dos anos, devido à falta de mão de obra, os marginalizados foram se tornando relevantes para o mercado de trabalho. Por conseguinte, No período da revolução industrial, instaurou-se um período de escassez de força de trabalho e, por essa razão, desenvolveram-se as prisões, com o objetivo de ressocializar as massas excluídas ao trabalho assalariado. À medida que a revolução industrial se procedeu, a ineficiência transformadora do cárcere foi se tornando nítida e, diante do aumento da disponibilidade de mão de obra, a prisão transformou-se num simples depósito de pessoas, servindo como mecanismo de coesão social e segregação dos marginalizados; tal função prevalece até os dias de hoje. Tendo em vista que no capitalismo as relações empregatícias nunca foram estáveis, e o desemprego é um meio essencial à circulação de mercadorias e manutenção dos salários, o direito penal cumpre, no modo de produção, o papel de segregar uma massa gigante de proletários excluídos do, em tese, contrato social. Obviamente, os excluídos serão sempre componentes de minorias históricas.

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Constata-se que o hodierno princípio da legalidade é utilizado como uma ferramenta de evidência para rotular grupos vulneráveis, e a sistemática do direito penal, por seu turno, atua de modo a selecionar indivíduos estigmatizados. A incriminação das drogas é o exemplo mais claro do uso da legalidade como mecanismo de arbitrariedades. A origem da proibição ocorreu no EUA, com alicerce na relação preconceituosa de determinadas drogas com certos grupos, indesejados no país. No entanto, o embasamento manifesto da incriminação foi com respaldo em estudos ‘’científicos’’, porém de caráter meramente político, desvendado posteriormente. Adotando a postura incriminadora, os EUA, em pouco tempo, se tornou o país mais encarcerador do mundo, sobretudo das populações oprimidas que lá residem. No Brasil, a lei de drogas é devastadora, e mantém-se justamente através dos argumentos simbólicos que expressam uma utilidade abstrata. Na realidade, a norma em questão é evidentemente ilegítima, seu fundamento constitui-se em perigo abstrato, presumido, não comprovado empiricamente. É, também, imoral, na medida em que busca interferir nas escolhas individuais, lesando-se, assim, a liberdade de autodeterminação e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana.

Conclui-se, enfim, que o direito penal é um dos meios pelos quais a classe economicamente hegemônica mantém seu domínio estrutural. Configura-se como um meio de controle fictício, cuja função fática é voltar-se contra os inimigos potenciais da ordem econômico-social vigente. E seu fundamento de validade é a legalidade, que se apresenta como ferramenta legítima de arbitrariedades; só que agora nas mãos de outra classe social.

*Victor Silveira Garcia Ferreira é graduando em Direito pela Faculdade de Direitos da PUC de Campinas, integrante do grupo de estudos avançados em Escolas Penais – GEA – IBCCRIM e colaborou para Pragmatismo Político.

Referências:

GOMES, Luiz Flávio. Beccaria (250 anos): E o drama do castigo penal: civilização ou barbárie. São Paulo: Saraiva, 2014.

MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. CRIMINOLOGIA. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

TAVARES, Juarez. Os objetos simbólicos da proibição. Rio de Janeiro: Uerj, 2015.

SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2016. 303 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, 2016.

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